Rita Isasora Pessoa nace en Rio de Janeiro, alá polo 1984. Ademais de psicóloga e psicoanalista, tamén traballa como astróloga e taróloga. Tamén se doutorou en Literatura Comparada. Mais agora queremos fixarnos na súa actividade como astróloga porque iso pon o nome de Rita Isadora en contacto co de Júlia de Carvalho Hansen e comparar as dúas poéticas aparécese como unha tentación irresistível. Que nós imos resitir, porque a nosa única finalidade é presentar a poesía de Rita Isadora.
A día de hoxe ten publicado tres poemarios:
-no 2016 – A Vida nos Vulcões (Oito e Meio)
-no 2018 – Mulher sob a Influência do Algoritmo (Cepe)
– no 2020 – Madame Leviatã (Macondo)
Sobre A vida nos Vulcões recomendamos a lectura deste artigo de Gabriela Farrabrás, que o describe con precisón e rapidez.
Mulher sob a influencia do alogoritmo foi vencedor do terceiro premio Cepe de Literatura. Trátase dun estudo poético, un estudo lírico sobre as posibilidades de existencia da muller, e tamén da capacidade da linguaxe para representalas. Necesariamente, salvando as distancias, lémbranos en certa maneira o poemario de Rosalía Fernández Rial Árbores no deserto.
Do seu terceiro libro, moi recente, temos moi pouca información.
Ben, aínda que nun principio o seu primeiro poemario parece levarnos por xeografías exóticas, non é máis que un artifíco para introducir un tipo de pensamento pouco ortodoxo en occidente, e esa é a filosofía oriental. E sempre diremos nun principio porque a poesía de Rita Isadora parce sempre un punto de chegada, unha meta que é inicio (inicio cósmico) sempre a percorrer as interioridades da complexidade que é ser muller. Ou ser mulleres porque á voz poética de Rita Isadora nada do que supón ser muller lle é alleo. Ás veces, a súa poesía é como historias líricas, auténticas historias mediante as cales crear ese clima, esa ambientación interior que xa consideramos como signo da vangarda poética actual. Que, por moito que sexa vangarda tampoco é allea ao mundo literario clásico, e ben se pode dicir que no fondo da súa poesía aniña unha traxedia grega que ás veces a obriga a un xogo de desdobramento para sentirse a si mesma desde a estrañización.
E dese desdobramento, desa estrañización tamén nace a poesía como confidencia,como cofidencia a si propia e como confidencia a quen le a través do suxeito interposto dun eu/você que axuda á introspección.
Si, porque non é suficiente con ollar o mundo ás avesas, senón que se fai necesario virar un /unha mesm@ no aveso…para ter unha visión o máis completa e o máis ampla posíbel. E mesa completude, nesa amplitude, ten moito que ver o universo cultural de que é posuidora, onde entran desde Cortázar a Elliot ou Modigliani, por sinal, e onde tamén hai que contar coa súa formación como astróloga e a amplísima tamén formación humanística que das súas poesías se desprende.
Queremos finalmente que se fixen na concepción de vertixe, de abismo, da que parecen nacer moitos dos seus poemas, poemas que son tempestades interiores, delicadezas salvaxes, avalanchas, precipitacións…E tamén na riqueza formal, ás veces ben comexa, dos seus poemas, onde a concepción do texto como un obxecto no espazo a fai extarordinarimente variada.
Como sempre, deixamos constancia do seu Face por se queren seguila. E tamén o seu blog, onde poderán ler máis poesía súa.
E agora vai a súa poesía.
(En Mulheres que escrevem)
“a casa dos pequenos animais”
para suzana pessoa
você insiste
no clareamento forçado
dos meus cabelos
aparentemente lera um artigo
sobre uma técnica de suavização
de traços a partir da falsificação
de molduras capilares
e de alegrias insuspeitas
às quais sabe que sou alérgica
“é que o preto
enche o teu rosto
de sombras”
você decide ignorar que o preto
é na verdade uma pequena homenagem
que presto
ao corvo invisível
que segue pousado
no meu ombro
há uns bons anos
você pesquisa
sobre as 30.000 espécies
de escaravelhos
há horas você pesquisa sobre o egito antigo
há dias você escuta a cacatua da vizinha
berrar como se estivesse assombrada
você jura ter sido
visitada por um escaravelho dourado
na noite anterior
mas tem dúvidas se o bicho era apenas
um besouro luminoso ou talvez uma barata
geneticamente modificada
o fato é que você não sabe o que fazer
e nós duas sabemos que isso é um perigo
você o isola dentro de um pote de ervilhas
esvaziado há tempos de seu conteúdo
mas segue acordada
a noite inteira
angustiada com seu escaravelho
preso dentro do pote vazio de ervilhas
debatendo-se
na cozinha
o corpo arrendondado
a emitir uma luz sobrenatural
você sabe que é bem possível
que isso seja um sinal
um indício ou uma distinção
uma nobreza inusitada
entre seus colegas artrópodes
menos aristocráticos
mas nada a convence verdadeiramente de que não se trata
de uma barata geneticamente modificada
você teme
e retira o amor do poema
planeja uma corajosa operação de soltura
respira aliviada quando o bicho
compreende exatamente o que tem de fazer
e quando você o deixa livre
ele voa
voa com agilidade
para bem longe
sem hesitar
você se sente finalmente livre
para voltar a pensar nos cupins
que roem a estrutura da casa
do sofá e das portas e armários
a gata presta atenção aos ruídos
inaudíveis aos ouvidos humanos
os ruídos
de uma lenta demolição
você estremece e devolve o amor
de novo ao poema
sente agora uma certa liberdade para pensar
nas pequenas feras
no amor
na casa
na madeira nas paredes
nos ruídos inaudíveis
a todos
os ouvidos
salvo os da gata
cuja atenção se volta
para um murmúrio em particular
fora do seu alcance
“o método doppelgänger”
neste dia há de descobrir
que dentro do teu tórax
habita uma granada fossilizada
com meu nome gravado
a letra que te fez fêmea
mistério veneno
e me privou de teu estatuto de bípede
para inaugurar uma ordem secreta
de concubinato
de circe sereia convite aberto
para colisões contatos
para denunciar enfim em ti
uma voz
capaz de hastear mortos
como bandeiras em riste
para desvendar o gesto feroz
o giro carpado
geometria incansável
da foda
do limite
das cordas
e ainda assim ser capaz de
arrancar furiosa o encanamento
da tua planta hidráulica
[tua superestimada liberdade]
ter na ponta da língua
uma sentença óssea capaz de perfurar a membrana
sustar a anestesia
revelar tua rota fundamental de fuga
sustentar aquilo que rui
mas faz costa
a parte de ti que é pavimento
e se curva em istmo
sintomática em seu mecanismo
de defesa contra a água
na convicção daquilo que se tinge
e ainda assim permanece seco
no que insiste na afirmação
de propriedade
do poema
“esse poema é meu”
mas eu sigo mesmo vagarosa
[na dúvida]
sigo na possibilidade de que
este poema não seja meu
que animal é este?
“a hora da estrela”
esse é para você
morcego noctívago
que não reconhece nem teto nem parede
nem o próprio brilho
seguimos no nosso diadorim off-sertão
modernismo wannabe dos que vieram
diretamente da água
para matar a sede do rio
no fim prosaico da discussão de duas horas
sobre o copo quebrado ou o lixo vazando na cozinha
ou a panela de batata doce que cozinhou demais
você constata que, de nós dois, sim,
você é o mais romântico
e eu digo ‘mas nós somos românticos de formas diferentes’
e você graceja ‘é, de fato, eu sou da tradição
do romantismo inglês e alemão’
[sim, com tua solidão proporcionada pelo bosque
e a vastidão dos espaços naturais abertos,
você, oxóssi-caçador da bílis negra]
mas eu, no caso, segundo você, sou a tragédia!
você me diz, ‘você é a própria grécia’,
[cassandra, antígona e medeia
enfileiradas na cabeça da hidra, mais a fúria do olimpo
com raios de iansã e ingenuidade de macabea]
você diz que sou a origem de todo o romantismo, de todo o cinismo,
da neurose, perversão e da forclusão do nome-do-pai, da mãe […]
e aí, cá para nós, você há de me responder então como faremos
para cumprir a nossa parte, nosso fair share
na tarefa hercúlea de soçobrar
o mito do amor romântico,
essa bitch, essa marca indisputável —
fardo-sísifo da nossa geração pós-yuppie
— se somos nós, meu amor, o próprio mito
se nós somos o amor romântico
o perverso, a amor perdido
[encenado reencontrado]
— o amor com a faca na mão
e a própria sede do rio.
………………………………
(En Ruido manifesto)
das ruínas preliminares
ou
dos papéis individuais no fim do mundo
aquela sou eu esperando a catástrofe
com as mãos seraficamente pousadas
sobre o colo
a verdade é que só preciso
me agarrar violentamente
a um ponto fixo
na disco-voragem
deste sonho
e permanecer submersa
acontece que eu engulo tua indiscrição gulosa
descendo pelas minhas pernas
e devolvo delicadas ossadas
sob o signo da carnificina moderada
(uma forma de canibalismo contemporâneo?)
expostas em seu tutano todas as comissuras dos ossinhos
equilibrados sobre a porcelana
frágil do meu prato, porque uma coisa que acontece é que
o meu corpo
ele não se quebra
não quebra como se quebra um prato
ou um fêmur
não como se quebra uma linha
no fim de uma frase longa e deselegante
alinhada à esquerda
o que tenho a ser feito
pode até ser chamado de ofício
de linha e agulha
mas eu contenho hemorragias
é o que eu faço
— deveria ter sido médica
mas me coube ser dique
: eu contenho hemorragias
com as mãos
todos os dias
— um ofício que empresto
da pedra
para subjugar o rio
*
eu, olga hepnarová
é verão em praga
e o ano é 1973.
[você,
olga misantropová, com seu figurino de caminhoneira nouvelle vague, suas calças de veludo cotelê e a jaqueta de couro craquelada, você, anna karina psicopata, ainda que visionária, você ignora o óbvio
: o avesso do amor não é o ódio]
é verão em praga
mas faz ainda muito frio
e o avesso do amor é o coração terminando de bater de encontro ao asfalto, fraturas expostas, intestinos a migrar da cavidade abdominal como uma corda autônoma que sabe exatamente o destino que lhe é devido: o pescoço que espera a quebra
de parágrafo,
o cadafalso que espera
a quebra do pescoço
com a corda na mão.
[corta para] o caminhão de olga estacionado na calçada;
a fileira corpos estendidos como uma oferenda satânica, mas você não é satânica, olga, você é uma assassina em massa e isso é diferente. satânico é outra coisa. planejar um assassinato simples requer um engodo fundamental, um paralaxe e você
escolheu ignorar que o avesso do amor
não é o ódio.
é verão em praga
e faz frio;
o avesso do amor
se faz por meio de grandes colapsos,
colisões no concreto, no asfalto,
um embotamento brutalizado,
e você, olga hepnarová,
espera seraficamente
a polícia;
a bolsa no colo,
sentada em seu caminhão
você, a autora dessa carta perturbadora
para as gerações que virão:
“eu, olga hepnarová,
vítima de sua bestialidade,
condeno-os todos à morte.”
*
diário do ano do macaco de fogo
se como celan
eu tivesse a certeza
de que os poemas estão a caminho
se ao menos eu não tivesse
fundado toda uma mulher
[uma mulher inteira
Garganta glote ancas
sexo tornozelos]
apenas em torno
de uma palavra infeccionada
se eu não tivesse
as mãos gretadas
como uma figura mitológica
mal-sucedida
em suas peripécias amorosas
eu poderia sim acreditar
[como se a minha vida
dependesse disso de fato]
no efeito de luz
na voragem súbita
no obscurecimento
que se segue
e se repete
e se repete
nesse projeto desconjuntado
de revolução
mas é que eu vejo coisas
vejo coisas em ti e neles
constato o que há de cínico — o símio
que mimetiza o desfecho ígneo
e não
eu não sei mesmo manusear o objeto isqueiro
não tenho habilidade
para os grandes gestos incendiários
estou aguardando
p a c i e n t e m e n t e
a grande água
como alguém que gesta
um filho querido
na cicatriz íntima
de seu próprio útero
mas se aterroriza diante
da perspectiva brutal
do nascimento
de um grito
*
como batizar um ciclone atlântico
para priscilla menezes
você me assegura que
a tarefa de manufaturar a tempestade
deve ser como
a atmosferização do poema
como descolar uma palavra da outra
: seccionar a polpa
da casca
ou como subordinar a sua paisagem
à escansão algorítmica do vento
mas o silêncio dos astros segue
numa linguagem temporária
[ como nomear a passagem de um a outro? ]
uma tempestade do tamanho do estado de ohio
você garante: o ciclone toca o solo
como um ponto de voragem
toca o mapa geológico de alguma página escrita em tempo real acredite
você diz
[qual é mesmo o nome do ponto?]
85% dos furacões se formam a partir dos ventos africanos
você desliga a tevê e promete jamais assistir telejornais novamente
alimenta os peixes
sugere distraidamente
um cronótopo de deserto um nome
uma mulher
prateada como um arenque finlandês
montada num cavalo
em seu epicentro
— a imagem que te vem
é de um leviatã composto de destroços e vento
que se move
de um ponto a outro
[ dar nome a um ciclone é ser
também nomeada por ele, você conclui ]
você segura com dificuldade
uma lanterna entre os dentes
fixa o olhar sobre horizontes imóveis
para desacelerar a vertigem
como sua mãe ensinou
você não tem certeza
sobre a intenção da tempestade
: um tropismo de ilha
que não sabe se é continente
ou océano
……………………….
(Na Escamandro)
Noir
faço votos
para que o talho
[a ferida melódica
no teu discurso]
trespasse o teu gesto
no escuro
e afugente de vez
o mal.
porque nos fulge
um apelo
ao corpo
cósmico
deste universo de avalanches
que nos cobrem
em gloriosa aventura
de facas de cozinha escondidas
às pressas
e comprimidos,
e chuveiros ligados
e tempestades elétricas
acuadas em apartamentos
de dois cômodos, sem rotas
de fuga.
tenho tido soluços, arrepios
na base da espinha dorsal,
na base da questão.
tenho esperado, com insistência febril
por uma revolução sonar
de decibéis inaudíveis;
tenho implorado re-pe-ti-da-men-te
por um romance policial noir
e pela existência de norma desmondcompacta
em minha mão
imbuída
de todas
as más intenções.
não tenho certeza se
caibo
nesta pequena vida
que diviso por entre
a janela da sala,
por entre nesgas de compromissos
e heteronormatividades de conduta
e filhos gêmeos – ainda não
nascidos.
ana c.,não é bem verdade
que virar do avesso é, de fato,
uma experiência
mortal.
porque eu preciso da dúvida
: dessa incerteza corriqueira,
[essa, sim, letal]
sobre a existência de algo
verdadeiro,
sobre a existência de algo
verdadeiro, sobre a existência
de algo verdadeiro
que resista.
sobre a existência que resista
a algo de verdadeiro, eu-preciso-da dúvida
que resista
a algo de verdadeiro
sobre a existência.
§
antimusa
aquela que traz,
nas cartas de baralho,
notícias sobre a vida silenciosa nos vulcões;
a cigana verdadeira das suas repetições seriadas.
com pés de mujique e linhas siamesas
para você, morcego siciliano que gastou sua melhor poesia
com as anteriores: valquírias, rosas, lobas e todas
as meninas prodigiosas, musas indiscutíveis;
sua barba ensopada de sangue, seus sonetos escandinavos,
suas certezas de amor jurado na carne trêmula.
mas eu, eu tenho um passado romeno; um coração eslavo
de proporções gregas, com colunas e templos em ruínas.
partilho minhas agruras conjugais com a moça alta da padaria,
seus dois filhos e casa na baixada, anulada entre tijolos e turnos.
mais ainda, minha alma não é legível,
passível de ser extraída em formato compatível.
paga-se um preço pela serenidade doméstica,
serenamente; um holograma ornamental,
esvaziado e preenchido,
repetido até a exaustão dos nossos membros difusos.
a inconsistência de conteúdo
do amor há que ser forma
e caminho.
uma forquilha aos pés de cabra
onde desdobram barbatanas, justo no lugar que havia
apenas respiração
e um breve entorpecimento noturno
da pele.
§
um casamento romeno
quando penso em você
eu me lembro
do som ininterrupto
de patas e correntes
resvalando sobre
a terra batida
do encantador
de ursos
empoleirado
com seu acordeão
longínquo se afastando
do vilarejo
para retornar no verão
seguinte com o mesmo urso
sempre o mesmo urso
a mesma intenção oculta
a fome do bicho
a dança notável do bicho
impressionante
o mesmo urso
me lembro de quando
anoitecia
e a avó ladrava
para eu sair logo da rua
e voltar
para perto
do fogo
pois aquela era
a hora
dos morcegos
dos mosquitos
das criaturinhas aladas
que voam suicidas
em direção à luz
eu me lembro claramente
do dia do nosso casamento
os sinos dobrando em dois
eu me dobrando em duas
de dor de desterro
o som dos pratos quebrados
as moedas voando sobre nós dois
os votos de boa fortuna
dos anciões
em vão
our big fat romanian wedding
um matrimônio italiano à leste
de bucareste
nem a teoria do multiverso
explicaria nossa presença nesta
tragicomédia a lakusturica
mas escrever sobre o amor
é como fundar um país íntimo
deslocado à parte
de um domínio continental
operante
escrever sobre o amor
é como violentar um poema
no seu cerne
de crisálida
quase sem pele
ainda sem asas
e partir sem nada
mais à leste
do que antes
porque escrever sobre você
me faz lembrar de coisas
que eu não deveria lembrar
escrever sobre você
é sempre esse problema:
o choque de metalinguagens
o urso, as patas,
o roteiro cinematográfico
desandado, o fogo, o sangue
as asas.
§
primavera autocrata politeísta apocalíptica
deixem a primavera para bandini
e para keats com seus pulmões em colapso
os girassóis para van gogh
e pelo amor dos deuses, se falarem de andorinhas
que elas sejam radioativas
e não melancólicas
porque aqui não aceitamos mais andorinhas
e nem albatrozes brancos
anacrônicos
apenas os sanguinários
homicidas.
aqui nos movemos
na sombra
e cultuamos
tudo aquilo que é
suavemente
~gótico~
[e portanto
deslocado
nos trópicos]
então desliguem
os holofotes
e apreciem
aquilo que cresce e goteja
úmido entre as frestas.
§
sobre o incidente de emagrecer 5kge se tornar uma serpente mítica grega por alguns días
escrevo este poema
neste estado de cetose
química
que nada mais é do que
o termo médico
para quando o corpo
resolve devorar a si próprio
[como a serpente ouroboros
que engole a própria cauda
infinitamente non stop]
depois de um período de privação
de carboidratos
simples
ou complexos
[ou depressão anoréxica]
ou simplesmente
um jejum prolongado
aqui
entre estas doze paredes
e suas incontáveis quinas
arestas ângulos agudos
o b t u s o s
[eu contei todos esses dias]
não há amor
não há sombra
nem carboidratos
é a porra da terra devastada
do eliot
só há esta luz que penetra
tornando tudo nítido demais
as cores primárias demais
essa saturação insuportável
onde estão os fiftyshades de
qualquer maldita cor que seja?
quem diria que a sutileza
se perdia
junto com os carboidratos?
‘um nevoeiro mental’ o médico disse
‘é um dos sintomas
você vai ver’
significa que está funcionando
e em breve
esse peso também irá embora
[mas não]
eu vejo mesmo todos os contornos
não há nada difuso aqui
nem nevoeiro nem sombra
eu vejo todos os contornos
excessivamente
quero rasurá-los
mas eles se recompõem
quando eu não estou olhando
§
devagar
com o pensamento em Ana C.
troco o hímen
por um homem
como quem troca
um fonema
por outro
a pele
por outra
flor
escrita nas imediações
das catástrofes naturais
……………………………………………………….
(En Avenida sul)
mefistófeles para iniciantes
enquanto você está preocupado
com a musculatura do poema
eu limpei sua ossada
com os dentes
e povoada de arcos
e colunas e pilastras
aquieto uma arquitetura clássica
entre os braços
ensinando demonologia contemporânea
para a caravana medieval aqui do apartamento ao lado
jurando de pés juntos
que o século dezenove nem terminou ainda
enquanto você diz algo sobre fuzis acelerados
sobre não ir-se gentilmente para dentro da noite
eu me deito quieta nua
sobre a impenetrabilidade fumegante
deste chão de pedra
considerando
entrar na madrugada
como se entra num vestido
prensado a vácuo
[como se entrar em algo
fosse de fato
a questão
e não apenas o início cósmico
de um grande problema]
………
dos vulcões em miniatura
o poema está sempre na iminência
de uma parada perigosa
enganchando-se à maneira do amor
ao fazer eclodir na pele
aquilo que inflama
aceso
e que
com um estampido
logo
apaga-se
#
fauno
cultivamos ciclones
sazonais como
veleidades que pendem
da boca, as mancuspias
de cortázar:
um compósito bestial
perfeito.
nenhuma translação
escapa
à nossa disco-voragem
[lampedusa]
de ilha.
um ouriço albino desloca-se
lentamente
através dos meus dedos
transparentes;
[ há ]
um animal sagrado
sentado em lótus
que nasce do rastro
de teus cascos,
um centauro,
atravessa o peito
num salto
[flecha & alvo]
em casamento trágico
e perfeito.
porque você invoca em mim
a paixão mítica,
ancestralidade da carne,
que é a gênese cosmogônica
do universo inteiro,
me desvela arquipélagos urbanos
entre prédios, ruas, entre seixos.
tenho a pele infectada de ti,
doença desconhecida que me
tangencia:
uma cicatriz desenhada
com os dedos.
[você],
você integra
my very own bestiário
contemporâneo
e me ensina pacientemente
duas ou três coisas
sobre a pele das ostras
e a minha própria morte.
#
o problema do vermelho nos objetos
I-
sobre o problema
dos objetos
e o teorema das superfícies
sobrepostas com texturas
enganosas
: o atrito impede
a cálida aderência
de um volume
sobre um sistema
mecanicamente isolado
do resto do mundo.
esse problema —
o problema fundamental
do mundo —
é que
teus volumes drapeados
acumulam-se
[inteiriços e impalpáveis]
sobre os móveis
depois que te vai
e me pego
timidamente voraz
na tarefa
de assomar tua forma
com dedos inábeis,
esculpir tua voz
com fonemas de pele eriçada,
pelo sopro sintático quente
da tua língua materna emudecida,
substituída por equívoco
por grotescos saltos
de tradução.
II-
presto incontinente
atenção ao vermelho
que ondula nas falsas
constelações
de luz artificial na parede
da sala térrea
quando acontece de um carro
a t r a v e s s a r
a fachada do teu sagrado
edifício de pastilhas
[de gosto duvidoso]
— esse jogo de luzes e sombras
a que alguns objetos
se prestam
quando ninguém mais se importa.
e durmo com
o problema dos objetos
e de teu volume drapeado
sobre as coisas,
o que se acumula à revelia
do sonho
e da terrível
……………………….
(na Cult)
ANÁTEMA
a partir de “Fala”, de Orides Fontela
Rita Isadora Pessoa
a mulher não deixa seu quarto
a mulher não abandona
sua zona de quarentena
ela olha o céu –
piscina lustrosa de negror
salpicada de pontos de luz
distantes em cena –
a mulher observa
o céu
esquadrinhado
por losangos cruéis
através da rede de sua janela
a mulher ela não abandona
a sua zona de quarentena
[ quando alguém olha o céu
ele retribui de volta o olhar
e a intenção de quem observa ]
(não há piedade nos signos)
não há compaixão nos planetas
nas constelações ou supernovas
a palavra
– essa falsa seta –
é um corpúsculo oco
de pura treva
ela arremessa e ricocheteia
de volta ao discurso de quem tenta
a impostura infame
de um poema metalinguístico
(não não há piedade nos signos)
a mulher está sob a influência
de uma quarentena
a palavra arremessa e fracassa
a palavra se curva
vergada
a um mal indefinível
de natureza incurável
…………………………………………………..
(na Oceânica)
“nota sobre a manufatura doméstica de mitos autodestrutíveis”
na nossa pequena fábrica de ruínas
eu pedalo indoors
porque não sei bem o que faço
com tamanha liberdade
tenho um pouco de medo dos grandes espaços abertos
por isso os círculos
por isso
eu puxo os aparelhos ergométricos pelos guidões
um suave deslocamento sem [realmente] sair do lugar
puxo a bicicleta pelo guidão riscando o chão da sala
como se segurasse
um touro pelos chifres
~um minotauro ex machina
de uma mitologia recém-criada ~
e finjo assistir um seriado sentada
ou termino um romance russo esfarelando
páginas amarelecidas
compreendo bem todas as suturas
do mais célebre parricídio da literatura
por isso os círculos
por isso
as tentativas insalubres de figurinos extras
como se estivesse finalmente preparada
para ocupar o papel de protagonista
e esses furos acidentais
seguem perpetrados pelos dedos
ou pela máquina de costura?
por isso
os capilares intradérmicos
perfurando invisíveis
partes ainda por vir
do meu corpo
e o aprendizado lentíssimo
da pecilotermia
meus minidemônios meridianos
brotando barbatanas brânquias
braços
enquanto fraturo
ossos imaginários
para acolher
em silêncio
uma nova ordem
de feras
por isso
você sabe
os círculos
xxx
“escrevo teu nome no grão”
por tudo o que tomba
sem se reerguer sem
sequer lembrar da queda
pela sombra
que nunca é proporcional
à luz
pela sombra
que não é proporcional
de maneira alguma
à luz
te escrevo o nome
onde se escondem
as montanhas
onde o sinal do celular
n ã o pega
nãopega nãopega n-ã-o pe-ga
escrevo ainda
com a tinta
que extraio dos moluscos
que aparecem mortos
pela praia
no inicinho da manhã
pelo esquecimento compulsório
da
q
u
e
d
a
“escrevo o teu nome
no grão de arroz”
porque saturno retorna
fora de hora
e a sombra não é proporcional
ao facho de luz
que te acompanha
[e é um absurdo que a luz
produza tantos monstros
com tamanha facilidade]
porque há sim pulsação nos vasos
altamente periculosos
das minhas pernas
e por tudo aquilo que tomba
sem levantar-se:
toma este grão luminoso
onde te escrevo o nome
devidamente instalada
na virada invisível
do rio
xxx
“uma mulher sob influência”
queria escrever um poema sensorial, um sobrevoo rasante, ébrio, erótico,
com palavras que pudessem salvar algo disto aqui, mas o poema ele fracassa.
o poema fracassa justo onde eu preciso ser salva, justo onde eu, como gena,
mabel, como outras, como todas as mulheres que levantam os braços e rodopiam
com ou sem roupa, pelas ruas ou entre paredes, em silêncio ou aos berros,
justo onde enlouqueço numa sazonalidade que não omito
mas não controlo.
queria escrever um poema que colasse no corpo como um drink açucarado que seca
sobre as pernas no dia seguinte após ter sido derramado numa noitada sem que fosse
sequer percebido. mas o poema fracassa porque esta loucura
porque esta loucura tem o formato de dunas que se movem
lentíssimamente durante a noite, rearranjando uma nova paisagem estática
ainda que movente a cada dia.
o poema ele não se curva
ele é tão domesticável quanto uma onça
fumando charutos cubanos.
mas se você superar isto e seguir adiante, o poema te oferece
uma delicadeza selvagem
como a de um gato que brinca monotonamente com um balão de gás
já meio murcho,
rolando-o pelo chão com as patas e unhas, mordiscando de leve,
sem o destruir.
queria mesmo que o poema tivesse uma qualidade profética,
que inaugurasse um universo paralelo
mas o poema é bidimensional; ele tem a velocidade
de gotas descendo espáduas octagenárias, incorrendo
em cada vinco, hesitando nos profundos sulcos,
ensaiando um desvio
a cada acidente epidérmico
causado pelos anos.
xxx
“teresa”
para aquele que tem mar no início, meio e fim
tenho te escutado
com considerável dificuldade,
como aos balbucios morninhos
que escapam de um gato
sobressaltado
durante um pesadelo
— baby, por cierto, ¿sabes?
con qué infierno
sueñan los gatos?
não me resta outra opção
senão organizar meu tempo:
a) categorizando objetos;
b) esculpindo sisos extraídos;
o fato é que crio pontes de heras
para tuas frágeis elipses
e faço de mim tua vodca
em tempos de crise.
você, tez amadeirada
de contorno impreciso.
você, puro pêndulo
que eu sulco, inteiro
justo naquilo que se arrepende
a i n d a n o a r
inseguro
e densamente noctívago.
eu, a primeira lasca
— goiva
de duas pontas
feito lança que arpoa
em cheio
mas
não
retorna.
xxx
“dos rumores que se instalam”
não posso dizer que
ignoro com seriedade
a consciência do medo
nas gengivas
e a eletricidade que alimenta
o corpo venoso brutal
da vergonha porcamente
equilibrada nos joelhos.
como é possível
que a despeito de tudo
as gentes sejam?
que sejam com pavor,
e dentes caninos a mostra,
mas que sejam.
a mim, é impossível
deslizar com graça
por essa existência
de pequenos naufrágios
de impossibilidades rotundas
de quebra-mares.
ouço um fino assovio
que assegura
o cativeiro de muitas feras
nos porões deste navio
e sei dos rumores
instalados, pesando sobre
grossas cordas e velas içadas:
o coração batendo vivo
no fundo desta caixa.
xxx
“supernova”
tenho contido
entre os dedos
uma resolução
cabisbaixa ante o sono
eis que tenho evitado
meus próprios olhos
em reflexos
vidros polidos
cobrindo espelhos
como se faz após uma morte
ou na iminência
de tempestade
de raios
palavras setas
galáxias em colapso
em templos esvaziados
panteões
em abandono dorsal
um desterro nuclear
é preciso sobretudo saudar
a colossal quantidade
de massa
concentrada
em um minúsculo ponto
no universo –
nada escapa
à tua força gravitacional
nem mesmo a luz
nem o início
o sentido de todo amor
e do mundo inteiro
nem os artistas e os estetas
os anjos com trombetas
isso tudo indica
que sofremos de
qualidades extintas aladas
estrelas em último estágio
de evolução
é bem verdade que
nêutrons
[tuas palavras agônicas]
não nos salvarão
pois deste sistema binário
fechado fecundo
em órbitas circulares
não se sai com graça
nem de graça
perceba
há um preço
se uma força
aplicada
a uma massa
de um corpo
em r e p o u s o
é d e r i v a
tudo há de ser
impermanência
: m a r
do início
ao f i m
[ do fim ao
i n í c i o ]
dos tempos
xxx
“nota sobre um inferno astral em quase dezembro”
ou
“prove que não sou um robô”
hoje falo por mim,
eu
[gargalhadas]
que suo gotas constrangidas
ao ouvir minha própria voz
ao telefone
como a de um estranho
falo por tudo aquilo que fala
por intermédio de um vermelho
terroso violento atroz
como em
modigliani, como no abstracionismo russo
que mata poetas
em linhas geométricas
e por todos
aqueles que golpeiam os telhados
como gatos revolucionários
por toda e qualquer
sensação existencial
[na fronteira anatômico-imaginária
entre boca do estômago e pulmões]
por todo sentimento filosófico-existencial
de terreno baldio
inviolável
selvagem como um poodle abandonado
no parque
como uma abelha rainha
presa por um barbante
inauguro hoje com a ponta dos pés
essa hospedagem ambígua
na casa número doze do zodíaco
onde é preciso prestar contas
à esfinge moderna
com senhas
de letras e números
e enigmas insolúveis
“prove que você não é um robô”
[ ] não sou um robô
prove
que
não
sou
um
robô
xxx
“oxóssi-caçador”
tua queimadura de sol
invoca a existência
de um metabolismo secreto
pois, quando gotas do tamanho
de gatos siameses
pendem
pelos teus cílios compridíssimos,
teu corpo inaugura
essa dança de exílio
: porque o amor é a causa de tudo
que levanta v o o
e pousa sem memória.
a hora do chumbo
é nossa
pois há algo
de profundamente tocante
no teu desespero ígneo,
no torpor vaporoso que tomba
de nosso limbo doméstico;
há algo de bárbaro
no desalento único, tão teu,
na sombra de dois corpos
consonantes
e por isso mesmo aterrorizados,
prodígio do fulgor
de carne, dentes, pele
e pelos.
nosso
caso é antigo, oxóssi caçador –
flecha disparada na mata cerrada.
note a rosa dos ventos
esculpida no teu peito e aceite
o que há
: uma constelação nossa reservada
há séculos, por anos-luz
[siga as setas, siga a água]
……………….
(en Uma pausa na luta)
…………………..
(Na Escamandro)
“em caso de emergência estes demônios serão despejados nos jardins do palácio”
este é para os desavisados que
não atinam para a natureza incontidamente dupla do amor,
para os que acreditam na força centrípeta de algumas estrelas
ou creem ainda que isto se trata de um poema.
eu faço das suas palavras as minhas;
[com delicadeza atroz
faço dos seus gestos
……………..os meus]
isto é um aviso
a vocês, os incautos; este aqui é mesmo para vocês,
os angelicalmente
desavisados, os que não sabem o que os espera, os desacordados.
os que aguardam algum tipo de salvação, sob o signo de pisces,
em caso de emergência,
quebre o vidro.
mas não atravesse ainda os estilhaços.
atente para o que desperta ao lado, para o que acende
convoluto
quando o botão é finalmente acionado.
não atravesse ainda os estilhaços,
preste atenção ao ruído surdo,
ao que causa susto
ao pássaro,
à compressão de sua caixa torácica,
ao sopro que eventualmente há de se tornar
uma cardiopatia, um descompasso.
esse enegrecimento do céu
não é do tipo que se liquefaz
e isso não se vê todos os dias,
não é mesmo
eu vejo consolidar-se
como cal que assenta no chão após
a última demão de tinta
o princípio secreto de ruína
e ele não se vai.
se for o caso de emergência,
favor quebrar o vidro,
mas não atravesse
ainda
os estilhaços.
obs: em caso de eventos extraordinários, este poema deverá ser destruído.
§
madame leviatã
você sintoniza uma estação de rádio
……………………………sem dificuldade
nas próteses metálicas
dos seus dentes míticos
[você]
com seus inúmeros filhos
………………doados ao circo
atravessa um punhado de séculos
………………montada no lombo
…………….de um cavalo sem nome
[you see I’ve been through the desert
………………on a horse with no name]
………………………………testa os efeitos do galvanismo de hobbes
…………………………….num cadáver fresco
………………………você, a czarina da festa
com sua predileção por animais noturnos
………………………………..por choques elétricos
sempre uma pequena catástrofe express
…………………………….para chamar de sua
…………………………….é o que dizem: velhos hábitos — velho testamento
[…………………….in the desert
you can’t remember your name]
…………………….você se impacienta
com as elipses
com a interferência radiofônica
— a supremacia musical superestimada
…………………….da década de 70 —
e corrompe propositalmente
…………………….…………………….a letra
after nine days I let the horse run free
‘cause the desert had turned to sea
the ocean is the desert and the desert is the ocean
[a perfect disguise above]
você supervisiona diligente:
a sobrevivência das línguas mortas
a fabricação seriada de nebulosas
e também a nova edição unabridged do livro de jó
………………..a queda de sodoma & gomorra
a queda da casa de alguém chamado usher
— a visão da cordilheira devastada…… a comove
…………….por um breve momento
o cavalo o galope…… a música incessante dessa estação
………………………………………..e também o rebatimento da luz
……………………….numa outra superfície metálica
[after three days in the desert sun,
I was looking at a river bed
and the story it told of a river that flowed
and it is now dead]
…….aplaude secretamente
o colapso da beleza formal
……………..o objeto no breu
a permanência do deserto
e confirma
a consistência
do relacionamento lésbico
que venho cultivando
distraída
……….com essa jovem senhora
…………………..gótica
de óculos escuros & longas luvas
……………………….de veludo
……………….que
, parada diante de mim
, estende um cartão de visita
…………………..onde
sem elipses ou……. hurt feelings
lê-se:
[ codinome
morte
……………….
Na Mallamargens