Francesca Cricelli: aceptando os límites para non ter límites

Porxmeyre

16/08/2020

Esta semana andei con moi pouco tempo dispoñíbel para procurar poetas novas brasileiras a divulgar. Efecto diso é que escolla a Francesca Cricelli, a súa poesía, xa me era coñecida desde cando participou, en 2017, nun obradoiro de poesía na illa de San Simón. Encontro poético dirixido por Yolanda Castaño (moito ten feito pola poesía galega a Yolanda, e que pouco se lle recoñece, a meu ver) e no que participaron, ademais de Francesca, Rita Dhal, Estevo Creus, Antón García, Hu Xudong e Tomica Bajsic. Dores Tembrás creo que tamén andou por alí. Sabedor dese evento, esa foi a primeira vez que me acheguei á poesía de Francesca. Ben, ese é un dos motivos. Outro é a súa innegábel calidade poética. E, aínda se queren, o feito de que escribira sobre Galiza (ela emprega Galicia, poderán ler dous poemas despois), que sempre é algo que chega moi fondo.

Na verdade, Francesca Cricelli é unha poeta que xa ten un nome, internacionalmente falando. O poemario Repátria publicouno no Brasil e en Italia (2015,2017), 16 poemas +1 publicouno nos USA (edición da autora, 2017) e en Reykiavik (2017, ambos). No 2019 deu ao prelo a plaquette As curvas negras da terra , en edición bilingue (portugués e castelán). E en Errância reuniu as súas crónicas de viaxe, tamén de 2019.

Así mesmo é tradutora, e como tal traduciu á italiana Elena Ferrante, a tamén italiana Igiabá Scego ou a gañadora do Pulitzer Jhumpa Lahiri (nortemaericana de orixe bengalí).

Dito sexa isto para dar unha idea da súa actividade, nunca pretendemos exhaustividade.

Compre sinalar tamén que se ocupou da correspondencia amorosa entre Giusseppe Ungaretti e Bruna Bianco. E é de todas as poetas que levo divulgado, a que máis conexión ten coa Galiza, ademais de a Yolanda Castaño sei que coñece a Antía Otero, Maribel Longueira, Marta Rodrígues Marcuño, Manel Monteagudo ou Amauta Castro.

Este artigo divulgativo quere ser plataforma desde a cal ese número reducido de coñecid@s se amplíe, debería sernos unha utora moito máis familiar ao público poético galego.

Hei dicir tamén, que o título deste artigo suxeriumo a mesma Francesca nesta entrevista, na cal “acepta os seus límites” e é esta, a meu ver, unha maneira de trascendelos mediante a beleza do que escribe, porque aí si que non ten límites. Velaquí unha postura radicalmente diferente a outra que precisamente pretende trascender límites eliminándoos para deste xeito chegar a un totum revolutum que ten menos de literariamente novidoso do que eles/elas pensan.

Fica por dicir que é unha viaxeira incansábel, esta que medrou entre Brasil, Italia e Malasia. Naceu en Ribeiraão Preto, 1982, e ademais de poeta e investigadora é tamén tradutora, como xa se viu. Por riba, compartimos unha paixón ( que eu non podo practicar como quixera, as costas protestan!), cociñar.

Son moitas as influencias/referencias que se atopan na súa poesía. Non imos gastar tanto tempo/espazo nesa tarefa, ficará para outro día. A min, en concreto atráeme a facilidade coa que Francesca me remove sentimentos, partindo tanto de xeografías-imaxes do cotián, da vida diaria, como é capaz de achegarse desde aí ao pensamento trascendente. Francesca escribe como descubrindo mundos que están ao noso redor ou mesmo dentro de nós.

Agora, fican vostedes coa súa poesía:

É UMA LONGA ESTRADA REPATRIAR A ALMA

Há que se fazer o silêncio

para ouvir os dedos

sobre o velho piano da ferrovia

é uma longa estrada repatriar a alma

a rota é na medula

descida íngreme

ou subida sem estanque –

demolir para construir

e não fugir do terror sem nome

de não ser contido

apanhado, compreendido

é preciso seguir adiante

no fogo e sem ar

e se a dor perdurar

é preciso ser destemido

para espelhar o rosto

em outros olhos

distantes como num espelho.

…………………………………………..

AZUL

Há algo triste no azul dos teus olhos,

algo perdido e infinito neste azul dos teus olhos,

algo de azul

                   no triste dos teus olhos.

Há algo de teus olhos neste triste azul, algo perdido

                   no infinito do azul dos teus olhos,

algo infinito no azul perdido dos teus olhos.

Há algo azul

no infinito triste

dos teus olhos

perdidos.

……………………………………………..

CAMINHA INVISÍVEL

Caminha invisível o amor

na multidão doída e apressada

entre olhares dispersos.

O amor caminha só,

anjo atravessado por passos rápidos.

É menos do que um mendigo o amor

na hora do rush, na plataforma dos trens

e a cidade incandesce

minutos antes do pôr do sol.

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REMOVER DO CORPO AS CROSTAS DO SILÊNCIO

No se puede contemplar sin pasión.

Borges

Remover do corpo as crostas do silêncio

tudo que é vivo e exposto grita

e gira, pela avenida

a dor se junta ao rumor.

Para chegar à clarividência

procura-se um ritmo, qualquer um,

que descompasse as artérias –

a vida enverga sobre a avenida

no peito só a voragem do eterno,

a fração do abalo sísmico,

desenha na mão cataclismos.

………………………………………………………

A ESQUINA

Como los dardos en el aire

ávidos de su herida

Borges

A vida é uma esquina,

no cruzamento bate uma bola

sobre a corda bamba uma menina.

A rodovia opaca respinga no rosa dos ipês.

Há novembros em que só

jacarandás nos salvam,

deve ser por isso

que o coração do céu

tem nome de furacão.

…………………………………………………

QUANDO A PRIMAVERA ATRASA

Quando a primavera atrasa

e pode não mais chegar

à cidade, o céu se acinzenta sobre ela –

levanto os olhos e perco a amplitude.

O infinito está nas ruas,

há cores nos guarda-chuvas,

nas lanternas, nos semáforos.

Há que se iluminar a cromatura das vias

para refazer a primavera.

.

…………………………………………….

CATEDRAIS

Força sutil e estrondosa
a nossa, catedral
erguida no peito vazio –

no silêncio dos olhos,
sós e incessantes
construímos um penhasco,
ponte de uma dor a outra.

Como todo ser vivo,
hoje estamos
cada um com seu vício

……………………………………

RISCO

O tempo se arrisca
no mistério
da prece.
O resto é mar.

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À MINHA CAIXA TORÁCICA

What will endure here the longest
must be thoughtfully provided for
[Zbigniew Herbert, To my bones]
Agora ficou fácil
Salvamo-nos da carne
[Vasko Popa, Osso a Osso]
 

Expande no meu sono quando respiro
sob a pele selada pela noite
e oculta os cortes invisíveis da carne
o que nesta cavidade permanece desenraiza o quarto
duas caixas torácicas em paralelo, algo incompleto

se o peito é pródigo
mas cala a fala e seca lágrimas
o que perdura é esta moldura
gaiola de ar e batimento

esta ossada não estará
no Museu Nacional, não,
estes ossos nossos não serão encontrados por arqueólogos
não foram feitos para vitrines
porque quando vivos abrigaram o pássaro

à esquerda de cada um no desencontro do abraço frontal
um canto da serra do mar, um canto de outro lugar

debaixo da terra ou sob o sol dos nossos nada sabemos
só existem aqui no agora e no silêncio os ossos
esta caixa que tudo cinge no escuro
tudo que hoje arde e descompassa
já contém os vermes da terra
contém o pedaço da vértebra de nascença
passado e futuro

nem entalar a garganta dos cães
nem ser o hiato dos séculos

enquanto há seiva e sangue
estar eretos
roçar as costelas celestes
já que nada mais sei.

§


MURMÚRIO DO BRANCO
[sobre um desenho da cidade de Krumau de Egon Schiele]

Chove sobre as cores,
é um auto-retrato
o amaranhado do ocre e do laranja
uma lança que perfura o olho divino a falta.
Colore a densidade populacional nos mapas, o ocre,
mas as casas andam vazias
e no interior das coisas cantamos nus como Sophia.

Está no murmúrio do branco
o caminho do carvão
e eu o persigo pelas linhas, com os dedos
firmes sobre as janelas e as tuas costelas
as casas andam desabitadas de ti
da desordem vital
que confere têmpera à luz oblíqua da tarde.

Não há sismo
e os jardins são todos internos
os desertos todos interiores e anteriores,
eles resistem ao regar das horas
resistem
ao esmiuçar com os dedos os pastéis a óleo sobre a folha de papel.

Arden las pérdidas
como na praia as labaredas vulcânicas sob a lua cheia de Reykjavík
e aporta
aporta
aporta também o esquecimento
esta casa velha.

§

PRELÚDIO

Entro nos teus olhos como num bosque/ cheio de sol
[Nazim Hikmet]

É na ausência do pássaro
que se compõe o canto,

ou na recusa da fruta
de vir à rama quando não estás?

A orquídea do quarto
represa em suas raízes
toda a água para varar a noite;
eu caminho deslocando ponteiros.

Não há hora que falte
nem tempo de sobra;
o silêncio é a tua medida
e mantém-me o passo.

O resto é voo.

§

ENSEADA

Afora/ o teu olhar/ nenhuma lâmina me atrai com seu brilho
[Vladimir Maiakovski, Lílitchka!]

Trovoa ao longe
e um lampejo filtra o pano violáceo do céu
iluminando o quarto.

É um prenúncio,
sussurro de gotas sobre as costelas de Adão.

Na pele e na rua
deslizam os carros
deslizam teus dedos
deslizam sanguíneos
nas úmidas superfícies e cavidades —
n’algum lugar em mim e na cidade
chove torrencialmente;

mas para além
do recosto oblíquo dos olhos
para além da rotação dos planetas
no ponto em que não se vê e está
há a música
regência cósmica das esferas
ali por trás da curva do globo.

Ir ao fim do mundo
para apanhar a concha da vida,
e colocá-la aqui
no arco infinito dos teus lábios.

Na enseada da Costa da Morte
a vida quebra mais viva

…………………………………………

Caminha invisível o amor

na multidão doída e apressada

entre olhares dispersos.

O amor caminha só,

anjo atravessado por passos rápidos.

É menos do que um mendigo o amor

na hora do rush, na plataforma dos trens

e a cidade incandesce

minutos antes do pôr do sol.

……………………………..

Nature boy

I never have the courage to speak of you

vast sky of my neighborhood

Never of you, Zbigniew Herbert

Não tenho sob as pálpebras da memória

uma casa mítica para a qual retornar.

Tenho perdido o cheiro dos contornos

os nomes dos objetos, as cores do jardim.

É um corpo de atritos o retorno.

Só me detenho sobre as sombras das pernas

sobre o rosto do sagui emudecido,

olhamo-nos

por trás da parede de vidro em movimento.

Converso com os mudos e os insensatos.

Suporto dilúvios entre os túmulos.

Você me diz

é difícil ser historiador da própria história

e diz que um aceno de futuro é mais forte

que a antologia de motivos para não vivê-lo.

O poeta também me diz

não se surpreenda por não poder descrever o mundo

e só abordá-lo com ternura pelo nome.

Mas chove e não posso falar

do vasto céu desse bairro.

Leio Zbigniew Herbert para não dormir

so many feelings fit between two heartbeats

so many objects can be held in our two hands

Mas você fala dos recortes do passado,

das fotografias, das matrioscas.

Desacelera.

Tudo se fez bairro nesta cama

desde que minha alma salva

esbarrou no seu futuro

…………………………………………

Cabra-cega dos corações miseráveis

Para Ana C.

Em outubro, pela primeira vez, acordo imersa em meu próprio mar.

Ainda que turva e em desalinho, há a vista.

De tanta vida liquefeita, crescem inteiriços, ao redor dos olhos, óculos, algum anteparo.

O corpo nu.

A cabeça escafandro.

Os peixes, fabulosas iscas do futuro, escondem-se entre as anêmonas,

nos cantos, entre as paredes.

E há escombros, relíquias, destroços.

Coral vermelho no centro do quarto.

A morte nos absorve inteiramente.

Choramos com a facilidade da nascente.

E consumida pela água, pelo tempo, sou vestígio de uma nave.

Um timão atravessava-me o ventre.

Mas quanto tempo

tarda a morte

a morrer?

Lençol freático

Epppure resta

che qualcosa è accaduto, forse un niente

che è tutto

………………………………………………

 Eugenio Montale

nada mais do que

uma

linha imaginária

divide da reserva a superfície

o silêncio caudaloso

alimenta as cisternas

tudo que o céu devolve

corpo recolhido

entre as margens

O que resta incrustado

no côncavo da memória?

luz refletida sobre o Arno?

som de córrego?

lua cheia colorindo as artérias da Amazônia

ou o Tietê putrefato?

o hipnótico

incessante movimento

diz:

‘nem tudo termina por aqui’

há tanto curso

até o mar,

nossa existência aquática

há sempre um rio

para medir a sede

do mundo

levo sob os pés

o lençol freático da ausência

[do 16 poemas +1, 2017]

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Botão

Minha mãe insistia que pregasse o botão solto à camisa de linho.

Que removesse o fio que já não o prendia,

que refizesse o alinhavado entre as fissuras.

Que o mesmo se segurasse bem sobre o tecido,

para não ter de pregá-lo quando enfim caísse,

poderia perdê-lo pelas ruas, sem notar.

Mãe que ensina ver o frágil antes da quebradura.

Antes das coisas se perderem pelas ruas.

Antes do peito se expor à intempérie do tempo e do olhar.

Muito mais do que costura,

mãe, olhar atento às coisas por um fio.

Tê-las nos dedos com cuidado e paciência.

Refazer o caminho do fio entre os furos.

[do 16 ljóð + 1, 2017]

……………………………………..

Ser o sal que tira do mundo a cegueira do branco

As torres desta cidade elevam-se como declarações de amor

diz Zagajewski num poema póstumo para Herbert

admiro a altivez régia dos teus poemas

e eu adentro os tácitos fios desta conversa entre poetas

peço licença pela lembrança

na Avenida Paulista não eram as torres

mas as antenas sobre elas

e as confusas elevações

que se refletiam nos olhos da Gualtieri

que comigo caminhava e dizia

o que são estes braços metálicos que apontam para o céu?

seriam estas as catedrais de São Paulo?

onde não há horizonte faz-se no céu uma saída

e que saída se faz quando tudo é céu e tudo é mar

onde só há horizonte

como represar a paisagem por trás dos olhos?

retroceder no espaço como as geleiras

rasurar fiordes sobre a pele

nos esgarçamos aos poucos quando não nos perdemos

deveríamos autorizar o tempo, o longínquo, as quedas d’água

o sonho que ronda o nosso sono

paira sobre os olhos

sobre as pálpebras fechadas

há tanto vento em ti e tanta estrada à frente

as nuvens não estarão sobre nós para sempre

no equilíbrio entre a melancolia e o riso

traçar o risco

enraizar as declarações de amor

plantá-las como tempero

fazer com que cresçam feito tomilho numa estufa geotérmica

ser o sal que tira do mundo a cegueira do branco

[São Paulo, 14 de março de 2018]

…………………………….

As curvas negras da terra

Nesta madrugada arderam

como a muralha chinesa incendiada de lume

as montanhas da Galícia;

o dorso do dragão em chamas

esteve à espera de um São Jorge aquático que nunca chegou.

Era uma serpente de lava a subir e descer

as curvas negras da terra entre Allariz e Redondela.

Daqui, da ilha de São Simão, ainda

envolvida na bruma tóxica,

sonho a fecundidade do nosso futuro.

A novidade da morte percorre-te

a espinha, brasa gélida

converte-se em pranto mudo o medo

às margens do porto azul dos teus olhos.

Desfaz-se a memória, água adentro.

Tememos a falta do que habitaria o porvir

e então traduzes o que quase sei numa língua desconhecida.

Chove e não posso caminhar à beira-mar

para colher-te o olhar daquela margarida,

cristo branco, erguida sobre as pedras centenárias,

flor dilatada ao vento com olhar de súplica ao céu:

igual os meus pulsos quando, em meu sono, os sorves.

[São Simão, Galícia, outubro de 2017]

………………………………..

Do you know god?

protege toda uma cidade o Esja

como ninguém

como mais nada

protege

dizes

anteparo para o mais cortante dos ventos

mas há algo de contorno ou travessia no dia

salta além da parede rochosa

vem do mar

vem e corta o rosto

vem e traz o sal aos lábios

um degelo demorado pode nunca se avistar ao horizonte

o céu leitoso acachapado cresce como capim sobre as nossas cabeças

eu não alcanço suas raízes aéreas

não desfaço com os dedos o branco

pesa-me sobre o peito o incolor

e os meus olhos anzóis

e os olhos dele

poços de sal e mel

por trás das jabuticabeiras

poços de sal e mel

ele ama o seu amor e a ausência dela como ama-se Deus

diz

do you know God?

mas se não creio como sabê-lo?

crês?

sei que a dor não se desfaz

não há Penélope possível

nem novelo ao revés

e se destituíssemos os anteparos

e fôssemos de novo intempérie?

crescem-me, por dentro, as asas

como aquelas que carregam os pássaros da Islândia

plumas azuladas que brotam escápulas adentro

e dizem

é no voo que se refaz a crença

[12 de junho de 2018]

[do Errância, 2018]

………………………………………………………

É O NASCER DO DIA
QUE RASGA O PEITO DOS AMANTES

É o nascer do dia que rasga o peito dos amantes,
como o verde que colore os olhos,
na mesma diagonal, o desenho de um milagre.

Plantar na terra
pés com o coração
e não ir mais embora
agora que colocaste o mar no céu.

Enquanto na garganta brota-me
a língua dos antepassados navegadores
meu olhar permanece no horizonte.

(Repátria)

………………………………………..

não há de ser
só escuro o lado
de dentro do muro
o avesso do viço esse pesar

é a retina
que rege o furor das coisas

sob o descompasso da neblina
há terra úmida que germina —
o coração do ventre
mora no olhar

há de se descortinar o céu de si
vento estrela aurora boreal
arrancar da própria costela a mulher que ali habita
morrer-se a cada dia um tanto
concha
semente
pranto
navegar além do canto (e do silêncio)
das sereias do pensamento

Ribeirão Preto, maio 2019.

…………………………………………………….

Açafrão

Os gatos quando nascem

têm os olhos cerrados à luz

movem-se lentamente no espaço

tacto

pelugem avermelhada

e olfato

deslocam-se tímidos

as patas imensas o corpo macio

cheiram a leite

vivem no sonoro e no escuro

miam silenciosamente para a cegueira do mundo.

É a memória, não o amor, um cão do inferno

unrequited love, I’d say

mas há uma canção de William Carlos Williams que diz mais e melhor:

“Deitado aqui, eu penso em ti: –

A mancha do amor

Domina o mundo!

Amarelo, amarelo, amarelo

o amor devora as folhas,

espalha o açafrão

os ramos feito chifres se dobram

pesam

sobre o suave céu lilás!

Não há luz

só há uma mancha densa feito mel

que cai de uma folha à outra

de um galho ao outro

arrancando do mundo inteiro

as cores —

Tu lá ao longe sob

a orla vermelho-vinho do oeste!”

Outona

e as folhas se dobram sobre o chão

cada coisa se recolhe sobre sua raiz

nas entranhas da terra

os olhos dos gatos

aguardam a primavera

(inédito, 2018)

……………………………………………..

Ipês

Nos ramos secos

as últimas três flores amarelas

apontam para o alto,

ainda não é agosto,

mas já definharam,

como meus punhos,

contra a maciça

cancela da vida.

Pedir à lisa superfície

uma resposta.

Esperar que chegue

um clarão

que não cegue.

E se tudo se apagasse agora,

no ruído diurno do aço

de um trem na periferia?

(Repátria, 2015)

Porxmeyre

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