Escribir para presentarvos a poesía de Lívia Natália hoxe constitúe para min un compromiso ético ( a miña posición ética sempre estivo do lado dos máis vulnerábeis e perseguidos, porque eu, como nacionalista galego sempre se sentín así e porque creo que é o único moralmente aceptábel), estético ( é unha brillante poeta, volveremos sobre iso) e tamén repetir parte do argumentário que xa comentei a porpósito doutras autoras negras.
Por exemplo, sempre que divulgo poesía de poetas negras debemos ter en conta que se trata dunha escrita feita nun contexto de carencia de liberdade, porque se se é negra e consciente do que significa ser muller negra nun país como o Brasil, estás obridada a que esa temática estea presente na túa obra. E así sucede na poesía de Lívia Natália. Se lle aplicamos a ela o concepto de “escrivivencias” de Conceição Evaristo non imos errar nada, porque en realidade toda escritora negra precisa facer fronte ao poder branco desde a escrita coraxosa, valente e subversiva da súa alteridade negra. E tamén non é novidade que recorra á africanidade como elemento distintivo social e literariamente falando, o afrcanismo centrado que aquí tamén nace e se expresa desde unha relixiosidade propia e diferente.
E se engadimos a ser muller e negra ser tamén feminista, a necesidade do activismo político e social é innegociábel aínda máis.
Esta carencia de liberdade, no caso de Lïvia Natália manifestouse moi claramente na censura dun seu poema. Si, estamos no século XXI, mais a censura segue existindo. O poema é este:
“Quadrilha”
Maria não amava João.
Apenas idolatrava seus pés escuros.
Quando João morreu,
assassinado pela PM,
Maria guardou todos os sapatos.
Parece ser que o poema atentaba contra a honorabilidade da Policía….
Censurar a arte é censurar á expresión máis elaborada de humanidade. Censurar a arte cando denuncia é a expresión dun fascismo intolerábel para calquera persoa consciente e non alienada. Aínda que só fora por iso, divulgar a poesía duunha autora censurada xa sería para min motivo máis que xustificado para facelo unha e mil veces.
Cando Día Bonito para Chover foi considerado pola APAC (2017; Associação Paulista de Críticos de Arte que é é a máis tradicional institución de críticos do Brasil) representou unha auténtica sorpresa para a autora, non polos seus innegábeis valores literarios senón por ela ser negra.
Cando a crítica sinala a presenza da auga na súa poesía (xa desde os títulos se ve, como comprobarán), Lívia Natália responde con palabras de Ruy Espinheira “Todo escritor escribe con aquilo que le é”. A este respecto quero lembrar o que xa escribín sobre Angélica Freitas e a poética da chuvia.
Demoraía inmenso escribindo sobre a poesía de Lívia Natália, unha poesía que, por difinila con poucas palabras, eu digo que é contundentemente elegante, na selecta que hoxe lles presento poderán comprobalo.A súa é unha poesía moi elaborada, moi traballada, que toca con elegancia a fibra sensíbel de quen le, con elgancia e con toda contundencia. Mais estas presentación quero que sexan breves, o importante é a poesía. Imos pois exponer a obra poética da poeta nacida en Salvador de Bahia no 1979:
2010 – Água Negra – EPP Publicações
2015 – Correntezas e outros estudos marinhos – Ogum’s Toques Negros
2016 – Água Negra e Outras Águas – EPP Publicações
2017 – Dia Bonito pra Chover – Editora Malê
2017 – Sobejos do Mar – EPP Publicações
Esta é a obra que lle coñezo, e, sinceramente, cústame moito traballo decidirme por algún título en particular. No referente á autoría individual porque tamén participou en É agora ou nunca – Antologia incompleta da poesia brasileira contemporânea, organizada por Adriana Calcanhoto e édita na Cia. das Letras.
Pouco máis quero engadir, que a calidade da súa poesía foi recoñecida desde o primeiro título (o que non salva do silencio nun país tan racista e machista como o Brasil) e, sobre todo, que nas referencias literarias imprescindíbeis para Lívia atópanse tanto nomes brancos como negros. É toda unha lección, a beleza non coñece color de pel. Vexamos algunas das súas referencias: Conceição Evaristo, Landê Onawalê, Cecília Meireles, Clarice Lispector, José Carlos Limeira e Drummond, Bandeira…Carolina Maria de Jesus, Pessoa…
Este é o seu Facebook, seguilo é ben interesante
Agora celebremos a beleza da súa poesía. Esa beleza contundente e por iso máis preciosa.
(No blog e Emmanuel Mirdad)
Sina
Todo mês eu sangro.
Diversa de mim,
atravesso Águas brutas,
oceanos que me povoam bravios.
Expulso o que em mim excede
e, do que sobra,
algo se move lívido
pulsando nas sendas de meu ventre.
Quando sangro,
o animal onde moro troca de pele
por dentro,
expurgando entranhas.
Todo mês eu sangro.
Todo mês eu singro este mar,
em que me banho.
——–
Assombro
Num dia como este
de chuva uterina,
meus pés dançam belos
no equívoco dos sapatos novos.
Esta sou eu, em ledo engano:
enfeitando o mal, o errado,
e as ausências do mundo
com meus pés pouco delicados.
——–
Buscâncias
Precisa-se de estrelas que brilhem
nos vãos do corpo,
que poluam com seu tom luminoso
a dobra opaca de que toda sou.
Paga-se bem:
em fartas moedas de silêncio,
com dores sem cura,
com sangue duro e vivo de entranhas.
Preciso de alguma luz estranha e calma.
D’algum clarão vivo e verdadeiro.
Algo que negue este estreito
onde moro em solidão.
——–
Anatomia
Meu corpo se dobra na curva dos dias,
as ondas passam prenhes de pássaros, peixes e maresias
o mar bebe o mundo com sua língua de onda
e meu útero permanece vazio.
Desconsolada,
engoli naufrágios inteiros
com pescadores e navios
e meus sonhos ganharam pele de peixe.
(Ando com esta barriga murcha,
recolhida no labirinto das entranhas.)
Meu útero bebeu a tinta das letras,
comeu papéis e teclas,
guardou-se debaixo do travesseiro, para o quando,
guardou-se no bolso, numa caderneta fina, para se.
Tudo vão:
Meu útero apenas ganhou guelras
e respira submerso.
——–
Filosofia da composição
Um poema me invade e nada me resta
senão o silêncio branco da página
que é o negativo de escrever.
Mas, no alto das brumas novas,
onde as nuvens se fazem brancas
como a página virgem
não há mais consolo
que neste inferno que é a palavra.
Todo corpo de artista é também uma espécie de inferno.
Zumbe o mundo em brasas na cabeça do poeta.
A mim,
me sangra é entre os dedos da sapatilha,
e minhas mãos flanam no alto,
no contra-luz do palco,
desta cena em que sou vista.
——–
“O que rima
quando tudo se finda
é um retrato perdido,
uma porta fechada para o inútil
e as tramas delicadas das cortinas
desvelando,
no paladar das horas,
aquele instante em que o trinco
permanecerá imóvel.”
“O mar se deslembra homérico do que passou.
No seu infinito de profundezas
tudo o que do mundo guarda,
é apenas rastro do perdido.”
“Enquanto espero, tudo é horizonte
e adivinho seu rosto antigo
na anatomia das pedras.”
……………………………..
(No Escritablog)
QUADRILHAS
Maria não amava João.
Apenas idolatrava seus pés escuros.
Quando João morreu,
assassinado pela PM.
Maria guardou todos os seus sapatos.
ÁGUA NEGRA
Chove muito na cidade.
No asfalto betumoso um sangue transparente,
ora de um rubro desencarnado,
ora encardido de um cinza nebuloso,
é vomitado em cólicas
por toda a parte.
Das paredes duras vaza um mais escuro que,
imagino,
seja a água mordendo as estruturas.
A água é assim:
atiçada do céu,
infinita no mar,
nômade no chão pedregoso,
presa no fundo de um poço imenso:
a água devora tudo
com seus dentes intangíveis.
OSUN JANAÍNA
Descobri que, para mim,
ser mulher basta.
Para puxar véus,
levantar saias
pintar as unhas de vermelho feroz –
mesmo que seja só para dizer: para.
Ou para ver a dança des-contínua do seu corpo
sobre o meu (o meu oposto)
pelo espelho que se emancipa
das paredes deste quarto
e desta tarde delicada.
Mas sempre ser mulher basta:
posto que é inteiro e vão,
onda que bate na pedra e despedaça
apenas para voltar inteira
– afogada –
num mar de (in)diferenças
onde cada gota solitária e única
forma um discurso descomposto,
cambiante,
plural:
mesmo quando me atiro sobre esta pedra,
que me rechaça.
ODISSEU
Seu corpo cresce em puro júbilo de ser.
E só.
Sobre a cabeça, dança uma juba arisca
alimentada pelo vento e pelos sonhos
com que embala o mundo.
Seus gestos firmes cortam o tempo,
inscrevendo,
na pele crua da memória,
seu rastro.
Sua voz,
saltando frenética sobre os átimos,
devassa as franjas silenciosas que embainham
o mundo.
Mas quando seu corpo ressona nos lençóis,
onde o espero,
é meu o seu silêncio
e a calma do depois.
É no meu corpo que escreves
sua narrativa mais primeira
e definitiva.
…………………………
(En Algumapoesia. com)
SOMETIMES
Às vezes é um vento mais forte
e ele vem de longe, tangendo as colinas
E as tardes se emancipam de mim,
como se fossem feitas de puro desejo.
Um azul intenso devora meus dedos
e os olhos, inteiros, são de oceano e vão
e eu estou perdida: não há portas
mas as chaves persistem,
pendendo de minhas mãos.
Um vento que me fala em uma outra língua
e, ainda assim, toda me devora,
e não há apelo,
e não há distância que o coloque de volta:
entra pelos meus cabelos
e faz deles sua mais perfeita morada.
Um vento, e eu de todo exilada.
Um vento, e eu desfeita,
calada.
Um vento e, pobre de mim,
sou toda feita de Água.
ORI ASÈ
Quando a quartinha canta,
prenhe de água absoluta,
um suntuoso aquário se tece
no breu de suas bordas.
Na sua voz de metafísica e nada
ouço a água doce e fria
de que está plena e emprenhada.
{Sua casca barrosa se limita
com o chão líquido do Orum
onde dançam Deuses de pele translúcida.}
Quando a quartinha estala a sua língua
saveiros dobram seus ombros nas docas
o mar respira, bebendo a si mesmo,
enquanto as ondas coçam as costas das pedras.
Onde canta o estalido
da quartinha
um Ori se planta no profundo.
ESQUECIMENTOS
Para minha Mãe
Se doer mais um pouco,
de minha boca sairão pedras
e tochas acesas devorarão minha carne.
Se doer só mais um pouco,
as palavras brotarão de meus poros
e minha boca se demorará em silêncios.
Se doer ainda mais,
nascerá um sangue bruto entre meus dentes
e meu útero perderá seus segredos de vazio.
O CASO DO VESTIDO
De tempo e traça meu vestido me guarda.
Adélia Prado
Meu corpo não respeita as estações.
Chove grosso em cada dobra da cidade
E eu trago comigo um vestido de verão intempestivo.
Meu corpo não cede e, vivo, arde no ligeiro das rendas,
nas maresias que lambem o ar.
Meu corpo não cede.
E o vestido que me desveste neste calor temporão
é todo bordado na minha pele:
por dentro.
ORISA DIDÊ
Arranca as percatas de seu cavalo
e nele galopa com os pés no chão.
Solta um grito que se espeta no alto
e,
repetido,
saúda a terra com a majestade de sua presença.
Dança sem a calma das horas,
pois seus braços se erguem para fora do tempo.
Caminha com sua carne de mito
e, quando vai, não parte.
Apenas se banha em seu próprio mistério.
………………………………..
(En LierAfro)
Poema-ebó (pelo 20 de Novembro)
Dono das encruzilhadas,
morador das soleiras das portas de minha vida
Falo alto que sombreia o sol:
Exu!
Domine as esquinas que dobram
o corpo negro do meu povo!
Derrama sobre nós seu epô perfumado,
nos banha na sua farofa
sobre o alguidá da vida!
Defuma nossos caminhos
com sua fumaça encantada.
Brinca com nossos inimigos,
impede, confunde, cega
os olhos que mau nos vêem.
Exu!
Menino amado dos Orixás,
dou-te este poema em oferenda.
Ponho no teu assentamento
este ebó de palavras!
Tu que habitas na porteira de minha vida,
seja por mim!
seja pelos meus irmãos negros
filhos de tua pele ébano!
Nós, que carregamos no corpo escuro
os mistérios de nossas divindades,
te vemos espelhado nos nossos cabelos de carapinha,
nos traços fortes de nossas faces,
na nossa alma azeviche!
Mora na porteira de nossa vida,
Exu!
Vai na frente trançando as pernas dos inimigos.
Nos olhe de frente e de costas!
Seja para nós o que Zumbi foi em Palmares:
Nos Liberta, Exu,
Laroiê!
……
Negridianos
Para Cuti, Limeira e Guellwaar Adún
Há uma linha invisível,
lusco-fusco furioso dividindo as correntezas.
Algo que distingue meu pretume de sua carne alva
num mapa onde não tenho territórios.
Minha negritude caminha nos sobejos,
nos opacos por onde sua luz não anda,
e a linha se impõe poderosa,
oprimindo minha alma negra,
crespa de dobras.
Há um negridiano meridiando nossas vidas,
ceifando-as no meio incerto,
a linha é invisível mesmo:
mas nas costas ardem,
em trilhos rubros,
a rota-lâmina destas linhas absurdas que desenhas
enquanto eu não as enxergo.
………………….
nde o espelho?
Para minhas irmãs negras
Este cabelo que lhe vai liso sobre a carapinha,
é o simulacro infeliz do que não és.
(Ao vestir-se com a pele do inimigo
o que de ti silencia e se perde?
Quantos animais conheces
que assim o fazem senão para reagir?)
Este cabelo pesa desfeito sobre sua carapinha.
Veste-a como um manto impuro
abafando o preto caracolado
sobre si dobrado:
filosófico.
Os fios se endurecem como cavalos açoitados,
e bradam da morbidez desta couraça
que te mascara branca.
Este cabelo requeimado e grotesco
sepulta o que em ti há de mais belo.
A dobra também é uma forma
de Ser.