Danielle Magalhães: dando verso á prosa da vida.

Porxmeyre

14/02/2021

DANIELLE MAGALHÃES: DANDO VERSO Á PROSA DA VIDA

De Danielle Magalhães coñezo o poemario Quando o céu cair (7Letras, 2018), poemario que causou sensación no panorama poético brasileiro. En todo caso, Danielle xa merecería un lugar nestas páxinas da Ferradura aínda que non publicara nada de poesía, polo feito de que pouca xente coñece tan ben a poesía actual brasileira, sobre todo a máis nova, como ela. Deste xeito, ao valor da súa poesía (moi singularizada entre as otras voces poéticas de mulher) hai que engadir un moi intenso labor de divulgación e crítica da poesía actual brasileira. Sendo nacida en 1990, e contando con pouco máis de 30 anos, perfílase como o que será un dos nomes máis importantes da poesía/literatura brasileira do século XXI…a pouco que non cese no seu activismo literario e no seu labor de creación poética…cousa que dubido moitísimo e non estou disposto a crer.

Para iniciar esta presentación da súa poesía, escollín un verso da propia autora que creo define ben a súa actitude poética diante da vida, se é que é posíbel facer iso con tanta concisión.

E agora que sae a palabra “concisión”, é preciso indicar que a primeira característica da súa poesía é que non é, nunca, concisa. Todo o contrario. Se a poesía brasileira de muller é para nós, @s galeg@s desusadamente longa…a de Danielle é aínda máis. Na niña opiión os seus poemas son auténticas “crónicas” poéticas, que parten dunha visión do mundo na que a sensibilidade do ollo poético é moi grande. Non hai poesía sen sensibilidade que a orixine. Do mesmo xeito, a poesía de Danielle quere sensibilizar a quen le. Unha sensiblización á que non é alleo o criterio político, pois hai nela moita denuncia da insensatez humana. Se a seguir engadimos que a súa poesía parece concebida como un exercicio de sobrevivencia nun mundo terrorífico, non pode sorprender. Ou que para ela a poesía é unha maneira de dicir e de ser.

Considero moi importante esta concepción da poesía como forma de ser, porque indica até que punto a autora vive a poesía, ou até que punto a poesía vive na autora. Por iso este poemario non é ocasional flor de un día. Por iso agardo con moita ansia novos poemarios seus.

Continuando co argumentario que viña perfilando, creo preciso ou acudir á percepción de Marisa Loures cando define a poesía de Danielle como “xornalismo humanizado”. Partillo e concordo completamente este xuízo, paréceme moi importante que a poesía humanice o xornalismo, ese xornalismo sempre tan dehumanizado, tan dependente das frías noticias de axencia. E ben quixera que aquí, na Galiza, se producirá poesía nese sentido. Alguna hai, como a de Daniel Salgado, por sinal, mais ben pouca.

Da súa poesía tense sinalado a tensión que crea entre contrarios. A dialética entre os abismos, digo eu. A dialéctica entre “forzas” opostas que nos remonta á cultura grega. Evidentemente, esta tensión crea perturbación en quen le. É nescesario creala como estratexia de estrañizar a quen le, como estratexia para que o texto poético non pase desapercibido, como estratexia poética para sacudir a conciencia, pensamento e sensibilidad de quen le. Para obrigalo a ler de xeito que reaccione, de xeito que o texto poético conteña/sexa/constitúa unha epifanía da posterior actitude de quen le. Quen le: @s vulnerábeis.

Poesía dirixida a  @s vulnerábeis, que observa unha dimensión ética imprescindíbel. Unha ética que conleva unha dimensión tamén política; ou unha dimensión política proxectada desde as necesidades éticas, ambas observadas, nacidas no material poético que proporciona o día a día.

Hoxe non lles deixo Facebook, non o coñezo.

E imos coa súa poesía, que é o que verdadeiramente nos interesa.

(Na Ruido Manifesto)


chama

o verão não deixará indícios

do que continua

queimando a conta gotas

o amor existe apenas

se a distância

existir como parte do processo

de aproximação entre

duas avenidas os destroços

pegam fogo as bocas

chamam um nome

que jamais irá amar novamente

somos interrompidos

como um verso

eu nunca vou escrever

um poema expressionista

anunciando o fim do mundo

uma mulher escreveu

a História

é uma história de muitos começos

e nenhum final

à distância ali

na esquina tragando

fumaça enquanto conversava

sobre o que é

amar ela disse

um poema continua sendo

um corpo todo cortado

esperando o início

da narrativa

*

do outro lado

do outro lado

o mundo tem um brilho

tão antediluviano

como uma jaca

aqui cheira à morte

e arroz

e a moça faz a unha do pé

ao mesmo tempo em que corta

a carne que vende

no mercado popular encontramos

todos os tempos da história

no relógio que não funciona

está escrito esta obra

pode alterar o funcionamento

de um marca-passo

cuidado não vá por aí

apontando esse cano

para a cara das pessoas

no rosto dela há duas covas

são o delta do mekong

desaguando no canto

da boca enquanto ela

sorri entre as carnes penduradas

há um sorriso há um dente que falta

há uma imagem que manca

entre as carnes penduradas

há dois olhos arregalados

e uma cara de espanto

entre as sobras

das carnes penduradas

há uma imagem que falta

do outro lado não sabemos

se ele é um soldado

ou um adubador

do outro lado tudo é

equívoco e contingência

é difícil pensar

que não fotografamos nem o tijolo

nem o sangue

quando o sangue e o tijolo

são os que mais resistiram

ao tempo

hoje talvez eu não queira andar tanto

para ir ao extremo do outro lado

é embaixo do viaduto da mangueira

que eu atravesso com mais frequência

por todos os lados

as marcas da guerra

são as partes que faltam

*

desvio

tenho conseguido fugir um pouco

de tudo só para doer menos

mas vez ou outra me pego

na voz metálica da vizinha

brigando com os gatos

ou falando da buceta fedida

no verão vez ou outra

preciso me lembrar de fazer amor

como se não houvesse baratas

me pego na lente da câmera

da mulher que não consegue

tirar fotos na síria

mas ainda assim tira

vez ou outra

me pego fugindo

da bola

nos jogos da escola

ou sendo atingida por uma

no peito

no meio da rua

como quando eu tinha 4 anos

meu pai saiu armado

para brigar

até hoje eu continuo com medo

de bola e de bala

vez ou outra

me pego no cano

do revólver do meu pai

errando o caminho

da fuga só para não parar

em algum lugar do abdômen

da minha mãe

que dói mais que

a bola no meu peito

e talvez mais que a bala

que continua perdida

vez ou outra me pego

atravessando

a mira que meu pai errou

e paro no buraco

que a bala acertou

em seu corpo

como tudo que vai

e volta vez ou outra

eu me pego

fugindo um pouco de tudo

mas às vezes

eu saio de triagem

e paro lá no fundo

da imundice do metrô

até chegar na glória

desejando ser comida

como a bala

que você mastiga

há meia hora

debaixo do chão

sem pensar no gosto

que é viver permanentemente

na dor

às vezes só nesse momento

me sinto doer menos

……………………………………

(En Tribuna de Minas)

Poema “últimos dias”

Danielle Magalhães

corredores de hospital mudam
a consciência que passamos a ter da vida
do tempo da morte
e do amor
mal sabemos
que esquecer pode ser tão fácil
não sem o custo
de se deparar com a falta
é isso
esquecemos
como um exercício de sobrevivência
como um exercício de sobrevivência
o seu zé carlos tecia sua tarrafa
em cima de uma maca
num corredor de emergência
ele me falava
menina saia da cidade
a vida só é boa
perto do mar
da roça e dos bichos
menina não consigo carregar meu celular
para falar com meu filho
a única coisa que eu pude fazer
enquanto você dormia
foi ouvir as histórias do seu zé carlos
dando alguma sobrevida
ao dedo dele que estava para ser amputado
ele nunca mais ia poder pescar
ou mergulhar como antes
além disso a única coisa
que eu pude fazer foi emprestar o meu carregador
que não adiantou
no dia seguinte eu vi o filho dele lá
apesar de não ter visto mais o seu zé carlos
enquanto você dormia
eu tentei escrever algumas coisas
para não esquecer
acho até que você ia gostar das histórias
de pescador do seu zé carlos
não sem antes fazer aquela cara
de que ao invés de ficar
falando pelos cotovelos
ele poderia estar dormindo
e deixando os outros dormirem também mas
a questão é que você nem esteve acordada
para ter como reclamar
da conversa que você nem ouviu
como não ouviu quando
já lá em cima no quarto
para pacientes terminais
o marco
esposo da moça da maca ao lado
me perguntou se eu tinha livros didáticos
de português
porque ele queria estudar pontuação
enquanto ela dormia
eu anotei mas
desculpe não ter levado
marco
eu esqueci
um dia depois de sua morte
eu estava na praça saens pena resolvendo umas coisas
burocráticas enquanto o carro da funerária seguia
para o hospital antes de eu seguir pra lá também eu vi
uma senhora escrevendo no meio-fio da calçada
como se a vida ainda estivesse ali
lhe dando tempo de escrever
apesar de tê-la abandonado em todo o resto
calmamente
tive vontade de perguntar o que ela escrevia
e para quem escrevia
mas anotei
e hesitei
hoje
olhei para a anotação
e vi que o título que dei foi
últimos dias
o que segue
são notas não numeradas
em tópicos
o seu zé carlos
a preta velha escritora no meio-fio
quantas caixas de bombom são necessárias
para deixar um médico mais humano
a vida é tão breve
mal lembramos que é tão fácil
esquecer
hoje você faria aniversário

……………………………….

(Na Germina) https://www.germinaliteratura.com.br/2016/danielle_magalhaes.htm

………………………………

(Na Mallamargens)

com olhos arregalados e o corpo
voltado para frente ele não encara o horizonte

futuro de expectativas humanas o homem inventa

o dia do juízo por temor de enfrentá-lo o temor

o impele à ilusão de que ele ainda esteja

por vir quando o que se encontra é sempre

o homem se encontra já sempre no dia

do juízo todo dia final é já não esperar

pela salvação é já não ser soterrado

pela frustração da impossibilidade de

uma saída não há nenhum caminho

o que chamamos de caminho

a nossa hesitação o corpo vacila

a nossa concepção de tempo nos faz chamar

o juízo com o nome de último

em realidade se trata de um estado de sítio um juízo

sobre a própria linguagem quando não há mais

nenhum objetivo em jogo uma decisão quando a linguagem

nada comunica não há fim não há

no final uma sentença no tempo do fim tudo se direciona a

uma finalidade o fim dos tempos a espera

sempre igual enfadonha repetição a velha procissão martela

nos ouvidos a expectativa o futuro a redenção para além

do tempo e para além da vida e

assim morremos todos no hoje sem saber que hoje sempre

com olhos arregalados o último poema

com o corpo voltado para frente

ele encara todos

são o último poema o último

dia o poema o último é escrito

todos os dias

*

*

mas eu sempre espero

eu que quase nunca falo

que já ouvi de tantas bocas a minha mão trêmula os dedos procurando nós

de um jeito inconsciente como se o corpo quisesse

se livrar como se o corpo quisesse desistir escapar sair por onde ainda não

havia começado sair pelo primeiro buraco por onde você acha

que vai estourar por onde a pulsação do sangue chega antes de você

dando o sinal de que você já não está mais ali por inteiro ou 

é nesse momento que você está aí por inteiro todo o seu corpo

os seus músculos o seu batimento a sua pulsação a sua respiração

num esforço sobre-humano eu falo é como se eu quisesse me livrar sempre

tenho uma fábrica de desespero debaixo da língua por isso falo

tão pouco eu que sempre espero palavras

*

depois do fim do poema poderia ser o momento

em que finalmente sua voz entraria um sentido 

se articulando a formação de um abraço ainda não

totalmente encaixado a iminência de um abraço uma massa

de som precipitando o momento por onde

começaria entrando de qualquer jeito depois do fim

a possibilidade da palavra mas e se a palavra jamais for dita

a possibilidade da palavra nunca dita  como se

nunca tivesse começado como se começasse

por uma exigência por onde tudo se dispersa

enfim dizer e depois de dizer depois do fim poderia ser o momento 

eu tento escutar só há o vazio eu tento escutar o que poderia

estar se precipitando na sua boca as palavras nunca chegam porém

só há cansaço não há mais nada

a esperar rodopiar no vazio entre

paredes ocas quantas pessoas neste momento quem

não diz fala comigo um som qualquer 

como quem late como quem berra como quem mia até

desistir depois do fim o que se precipita no seu corpo por onde lateja

a fisgada aguda nos membros que parte

se desequilibra insustentável por onde você

não diz no fim jamais se termina apenas se abandona

é preciso dizer assim como quem desiste 

começar é um exercício de desistência

não há mais nada depois por onde você não diz vamos

como quem desiste

(Na Letras. mus. br.)

Estrela Da Manhã

Daniele Magalhães

Eu procurei tua luz
Sabes o quanto vaguei
Quando encontrei o caminho
A tua alegria
Me encheu de canções

E pude seguir
Eu descobri que a cruz
É o que faz tua chama brilhar
Lenho perene que aquece o fogo divino

Sinaliza ao perdido o lugar
Onde te encontrar
Estrela da manhã
Tu brilhas como o sol
Corróis a escuridão
Jesus és meu farol

………………………………

(En Literatura e Fechadura)

começo

no começo era
ela
helena
para o ocidente
o oriente começou
com a queda
de uma cidade
no começo
do oriente
para o oriente
eu não sei quem era
o ocidente não sabe
que ele não começou
por ela
ele começou
pelo luto
da morte
de ifigênia
pela garganta
o sacrifício o sangue
nos olhos que moveu a guerra
tudo começou com uma guerra
que nem sabemos
se existiu
tudo começou
quando nomearam
de helena
a palavra
luto

***

entre o diálogo e o monólogo
há a guerra
o ser humano começa
a debater a debater a se debater
quero ver você falar de diálogo quando
quero ver
você falar
de diálogo
quando
a bala
atravessou aqui eu queria conseguir
falar mas depois disso chorei dois dias
com a irreversibilidade
travada na garganta
a ignorância é o conceito primordial quando alguém morre
morre uma história onde eu desaprendi
a falar a história começa assim
vou te falar
de uma maneira bem simples no princípio era
o verbo é
o caralho no princípio era
a violência
quando você fala
vértebra
a discórdia começa
quando você fala
ver
você fala vert
você fala há uma degeneração irrevers
quando você fala vers
quando você fala verso
há uma degeneração irreversível
no eixo que sustenta
o meu corpo
quando
você fala o acidente
é o fenômeno do percurso
versus a história que nos contam
você fala a história
das mulheres
começa
assim
como espólio de guerra o corpo
estuprado tinha que servir logo depois água e vinho
para o homem
vencedor ganhador estupra-
dor a história das mulheres começa
assim deus me deu pernas
curtas e pouca malícia e aquela fluência
que eu não tenho em nenhuma língua
viva estou em tempo integral
tentando errar o meu destino
para não coincidir com o nervo que falta
entre o estômago e o intestino da minha mãe
para não coincidir com o destino
da coluna da minha avó
para não coincidir com as dores
das mulheres que me criaram
para não coincidir com
o impedimento da vida na vida
tenho tentado errar o meu destino
para conseguir viver o luxo de viver
escrevendo do outro lado
não se sabe quantas vivem
quantas atravessam
quantas chegam quantas morrem
não se sabe
nomear
do outro lado
fui procurar
o exótico
achei tudo próximo
de casa
e tive fungo na buceta

……………………………….

(En Mulheres que Escrevem)

12 de outubro
1) día de la hispanidad
2) tiroteio no rio com granadas
fin de la historia
na fundação antoni tàpies
os imigrantes
os trabalhadores
saem das fábricas
de século
em século
os negros da áfrica
e os asiáticos do oriente médio essa coisa
de que a alegria pode dar muito certo já não é
a mesma coisa
na colônia de potosi
cada engenho tinha um santo
até hoje
não há nenhum registro
de resistência
indígena
no dia da espanidade em barcelona
os imigrantes latino-americanos
dançam
e desfilam nas ruas
em feriado nacional
a favor da unidade
da espanha
contra a separação da catalunha
do restante da espanha
na época da colonização
cada engenho
na américa espanhola
tinha um santo
até hoje
não há nenhum registro de resistência
os indígenas
hoje imigrantes
dançam a favor da unidade da espanha
a partir dessa data
que marca o descobrimento da américa
os povos latino-americanos e espanhóis se unem
a favor de uma das mais influentes culturas do mundo
a cultura hispânica
de barcelona a madri
eu só pego a cena final
do filme
fin de la historia
no dia seguinte
intitulo tudo isso aqui
de dylanices
e escuto mr. tambourine man
à noite para celebrar
o nobel ao dylan
treze dias depois
que dia PEC 241
e eu nunca estive tão longe
do brasil eu nunca estive tão perto
do mediterrâneo
escrevo aos amigos
para não sucumbir
peço pro maurício me contar uma história bonita
de paixão
eu choro
porque não fui
ao memorial
do walter benjamin
a duas horas de trem
na fronteira
entre a espanha e a frança
mas
o que é pior
é essa dor
aqui
nem o fim desse poema irá revelar
a minha ida
ao mundo
nunca aconteceu
na verdade eu sempre fui
bicho do mato she aches
just like a woman
but she breakes like a little girl tantas noites
no dia a noite mais longa é essa aqui penso em 3 coisas
no napoleão na inquisição
e em você
divisas que alivian a latinoamerica (El país,
16/10/16)
hoje eu vi
a extração
da pedra da loucura
e fiquei horas olhando para aquela imagem
enquanto minha cabeça não me aguentava
eu sentava de banco em banco
no museu para fazer algo de útil
com a minha ressaca
e foi ele quem confundiu a inquisição
com a bastilha
enquanto eu procurava a revolução
na orchata de chufa
sou la borracha
faz tempo
eu queria resumir meus últimos meses num enjambement
e nem você que agora me escuta saberia dizer
os saltos que eu estou dando nesse momento
o que de mais interessante você teria a fazer é
não saber
fin de la historia
como o vento gélido
que desce da serra nevada
há como arder
de frio em granada
de fogo mesmo
só ardo no rio
queria morrer com uma granada na boca
e saber quem deu a ela o nome de romã
o amor de trás pra frente
e com acento
há muitos cheiros
aqui eu fico entre
o chá
e a merda
no meio disso tudo
o facebook joga na minha cara
um poema
a vertigem
dos seiscentos e oitenta e nove metros de altitude
o consolo do mediterrâneo logo ali a sessenta e cinco quilômetros
mouros amantes contemplam-se na última torre de allambra
(Roberto Cossan,
Clínica de Artista I)
dizem as tarólogas
que a carta da torre
é a queda
de tudo aquilo que não se sustenta por si mesmo
(a torre
precisa mesmo
de amantes)
eu vi
a última torre de allambra
de longe
de uma montanha mais alta
que a allambra
depois eu vi
a última torre de baixo
para cima
ao pé da montanha
da allambra
eu vi só de longe
lá embaixo
do paseo de los tristes
nem dava para ver ao certo eu nunca estive
na última torre
eu sempre fui
obcecada
pela queda
no meio disso tudo
as minhas pernas tremem
nopaseo de los tristes
eu sabia que em breve eu ia atravessar
um oceano
alguns rios poças e infinitas faixas de pedestre
esperando o sinal abrir
para não me expor demais ao acidente
mas a verdade é que atravessei todas as ruas
distraída
não estarei ao seu lado
na próxima viagem
estarei a pé
desta vez
você irá sozinho
desta vez viverei a despedida mais longa
e não passarei da cadeira do meu quarto
desta vez irei sozinha
num mapa sem referência
seus dedos dedilham sons no ar
e foram tantas as vezes em que eu me debati
sempre
costumo errar nas contas
então tento dar forma ao pensamento
como uma forma de amar
pensa
numa puta parindo
agora pensa quando você reage a um poema
dizendo puta que pariu
quantos palavrões cabem
para reagir a um poema
quantas dores cabem
em uma puta que pariu
e as delicadezas
cabem
há delicadeza na reação
e na puta que pariu
um dia
caí na vida
nasci
não sei quem é minha mãe de verdade
nem sei qual é minha história mas
a mãe de verdade e a verdade são duas coisas que não me importam
nunca fui puta e no entanto
caio na vida
como um animal batido
melhor cair como puta
do que como um cachorro que caiu da mudança
não adianta
esse é o meu jeito de resolver as coisas
vou rodar por aí
até que uma faixa de pedestres me pare
algo que me diga
aqui
não há dúvida
se atravessa
já aprendi há tempos não há promessa em nenhuma terra
todos os hectares na andaluzia são privados hoje
ando com um pelo encravado na virilha e com fungos nos pés
e escrevo aos amigos para não sucumbir
aprender a ficar submerso
ou estar à altura
de uma saraivada de balas
não estou
nem em um nem em outro
vou
comendo jujubas estou para escrever
um poema para você há muito tempo
eu acho você uma das coisas mais bonitas dessa vida
e eu nem consigo fazer disso um poema
eu não sei quantas vezes eu apaguei e reescrevi
provas de amor
não são promessas
não é uma aliança um carro uma casa uma viagem não é nem mesmo
um poema
uma carta um verso uma declaração não é nada disso
é quando essa coisa
que você chama de amor
aceita seus pentelhos
grandes e aceita se você pintá-los de roxo vermelho amarelo a cor que for
ele me disse
não estou tirando foto estou escrevendo um poema
é no banho que você mexe nos poemas
e o resto
meu amor
é blá blá blá
e tudo dói
por isso preciso escapar
eu vou indo
não dá para viver o tempo todo
no real eu já não sei
se desistir é resistir
eu vou indo
pelo caminho mais fácil
ficar triste
é ir pelo caminho mais fácil
eu tinha que ter ficado
offline todo esse tempo a verdade
é uma estrutura de ficções
ao rés do espanto um tango quase fado
o coração
é o órgão amoroso da repetição
não era para a nossa história terminar agora
gracias por ser tú
nós tentamos
construir um amor durante 700 dias
em qualquer decisão estará o amor e estará o limite
meu coração
bombeia essa força que já não consigo mais reter no punho fechado

………………………

(Na Caliban)

……………………

CARTA AOS GREGOS

entre o céu e as ruínas
eu quis te dizer
mãe
a Grécia existe
e seria lindo se você a visse
por um momento
tenho vontade de antecipar meu desejo
de morar fora
só pra que você possa ficar mais perto
da possibilidade de ficar fora
uma vez na vida um dia
ver um pouco do resto do mundo
entre o céu e as ruínas
eu quis te dizer
existe uma sensação de possibilidade
que me invade só de ver
com as próprias pernas
que o mundo é grande mesmo
entre o céu e as ruínas
a vida é possível de muitas formas mas
não sabemos das mãos
que um dia construíram
todos esses vasos gregos
só sei das facilidades que me fazem
poder estar aqui entre o céu
e as ruínas
só sei das dificuldades que te impossibilitam
desde sempre estar aqui
te coloco onde você não está
e não é sem culpa que me vejo
aqui onde você deveria estar
ao meu lado
entre o céu e as ruínas
eu te contaria da vitória de Atená
sobre Poseidon
e juntas riríamos dos pirus
que faltam
nas branquíssimas estátuas
de mármore só há ausência
no corpo dos homens
a ruína também é a sua história
que não foi contada
aos gregos
eu diria de uma tal mortal
brasileira os deuses não sabem
da nossa história os deuses não sabem
dos restos das ruínas da sua vida eles nem sabem
que essa coisa de viajar é super recente
para os brasileiros nunca houve muita saída
só foi a partir dos últimos anos para cá
que brasileiros começaram a viajar
entre o céu e as ruínas eu só posso estar
por uma série de facilidades
que minha mãe nunca teve
agora eu só consigo falar mãe
entre o céu e as ruínas
é difícil sem você mas
escrevo a nossa história
onde ela não está

***

ESTAÇÃO TERMINAL

1. supervia

quando você vai de trem
logo de manhã você acaba sabendo
que o espaço mais digno de viver
e de morrer ali
entre o centro e a piedade
entre santa cruz e o centro
o espaço mais digno que resta
para viver e para morrer
é o vão
entre o trem
e a plataforma

2. funeral

não ter dinheiro para enterrar
um ente querido
e parcelar o funeral
na falta de um plano de morte
o que chamam de seguro
de vida é uma das mortes
mais indignas viver a prazo
não tá fácil pra ninguém
morrer é melhor
que ninguém morra
na dúvida dá na mesma
merda viver ou morrer
é permanecer
em dívida

***

SUBURBANA

a abolição nunca chegou a osório
o general depois marechal o herói
do exército imperial
lá nos mil e oitocentos e
hoje mais um
dos imperecíveis heróis
a cavalo
sentado nas praças públicas no rio
do centro à zona sul monumental
e cativo demais para chegar à avenida
suburbana agora
já antiga extinta salva
por dom hélder câmara
da origem por onde chegam os pilares
do norte dessa cidade
até a piedade que ironia
os nomes do eixo do caminho
antigo imperial hoje
o prefeito diz caminho troncal
é sem pernas nem braços dizemos
salvos pelo esquecimento
dos troncos dos engenhos os pilares
insustentáveis mãos amputadas
não mais alcançam
nem a praça
de onde o cavalo de osório continua avistando a praia
agora salva
da abolição que antes chegava
à ipanema depois de um caminho
longo até o ponto
final
do 457
que não chegará mais

***

MEIA BOCA

comigo não tem essa coisa
de que comigo não tem
tempo ruim:
se o céu não está azul,
algo aqui dentro vive menos
tempo. essa coisa de sempre ter que
fazer acontecer me cansa
como me cansa o que sempre
acontece é que preciso da força da falta
de chuva caindo como um tapete
sob os meus pés. não sou de sair dançando
com canivetes na minha cabeça,
não. essa coisa de sorrir mesmo
assim, me faz ter mais preguiça
dessa vida que desde sempre foi mais
ou menos.
por isso, beije só um canto da minha boca,
que a outra metade é a que eu mastigo o resto.

***

FIZ DAS TUAS PALAVRAS UNS VERSOS

afinal se há potência
no verso a poesia tem que ser lida
vagarosamente e repetidas vezes creio ainda
não ter lido o suficiente mas
não quero tardar em dizer algo
já que sempre
pode ser tarde
se cada verso tem sua potência
cada verso pede
um longo suspiro para que se chegue ao fim
ainda com algum ar
como pode saber do mundo doer
mais que um derrame pleural seja lá o que isso significar
além de muita dor
essa semana li uma frase
se não foi um verso
tem potência de sê-lo
se caímos dos paraísos
ainda podemos erguer
nossos paraísos fugazes
a potência de não doer sozinho
mas me sinto árido como se dentro de mim houvesse
cada vez mais areia e nenhum oásis
a vida está se esvaindo
de mim eu desastrosamente corro
atrás dela como se a sua fuga não fosse
meu próprio correr
eu nem sei bem
se estou pensando
estou muito enjoado
escrevo coisas que gosto mas
não quero postar no facebook
preciso ir
a um lugar
onde eu possa ler
isso
fui ao cinema ver um filme
era um drama
e as pessoas riam
minha amiga é isso
por hoje
o jeito é continuar
dando potência
para juntos continuarmos
na potência dos dois dedos
ou seja
dando verso à prosa
da vida

***

FICA AQUI O MEU DESEJO

eu poderia responder a uma esposa
mas escolho responder a uma amiga
eu poderia responder com um eu te amo
mas escolho te escrever
um poema eu poderia não
te responder com um poema
mas escolho te responder com um poema
porque escutei a tua resposta
como um poema
fica aqui o meu desejo
de chegar a você
mesmo achando que isso poderia não ser
chamado de poema porque para mim tanto faz
o poema ou uma resposta qualquer tanto faz
se uma resposta qualquer é um poema ou se um poema
é uma resposta qualquer eu acho mesmo que
um poema só pode ser qualquer
resposta se ele for um apelo como a sua resposta
se ele não for uma resposta mas um endereçamento
se ele não souber responder como a sua resposta
o poema te aceita se você for funda ou rasa
se você for banal ou efêmera
se você for contida ou transbordante
se você estiver sentada
tomando um sorvete
ou pendurada em uma gota d’água
em um dia de sol convulsionando
ou pedalando tanto faz o poema
aceita qualquer merda na alegria e na tristeza
na saúde e na doença o poema aceita o seu estar sempre
junto e o meu estar separado sempre
eu poderia te responder poemas
são o meu modo de viver
poemas me acolhem mais poemas me aceitam mais
talvez porque eu me aceite mais e me acolha mais
quando eu escrevo talvez porque eu te aceite mais
e te acolha mais quando eu escrevo talvez porque
eu aceito mais a vida e acolho mais a vida
quando eu escrevo poemas talvez eu consiga dizer mais
a você do que todas as vezes em que estive com você
tentando lidar com as nossas diferenças
e com os nossos limites
tentando lidar com os meus limites
na gota d’água tentando lidar com os seus limites
no fundo diante do raso da minha gota
diante dos meus limites o poema diz sim
diz não diz até talvez
diante dos seus limites o poema pode dizer qualquer
merda tanto faz o poema acolhe qualquer
diferença qualquer limite o seu diante do meu o meu
diante do seu é por isso que eu escolho a merda
do poema para lidar com a merda
dos meus limites para lidar com a merda
dos seus limites para lidar com a merda
e com a vida das diferenças e dos limites
em uma bola de sorvete
ou em uma gota d’ água eu escolho o poema
para lidar com a vida
da forma que eu consigo
gozar mais
às vezes eu peço perdão por isso
mas agora eu não quero pedir perdão
eu poderia pedir perdão como já escrevi
em um poema peço perdão se o poema
é a minha forma de pedir perdão
quando na verdade deveria ser mais uma forma
de convivência
talvez o perdão
seja a falta e a vontade
de um doar
permanentemente
per-doar
na impossibilidade de doar
perdoar-se
mas agora não
agora eu não peço perdão
agora eu te respondo sim
o poema me faz
amar
mais
o poema me faz eu me amar mais
sim o poema me faz
eu te amar mais
aceitando e acolhendo
com o poema eu gozo mais
e isso também é dizer sim
à vida

***

AMÉLIA

como quem não precisa segurar a mão
da mãe para conseguir dormir
como quem não acorda sobressaltado
porque vê que está sozinho
como quem empunha a segurança
no canivete que carrega no bolso
como quem empunha
a marra no andar
impondo na cara
de cara o que eu gosto em você
é o meu contrário
portando a guerra na cara
como defesa
pela culpa de ter nascido
como um filho de uma puta
que pela ironia da vida se chama amélia
a submetida
por você a mendigar
pelo perdão que ela não te deve
por não ter conseguido ser sua mãe
nem quando finalmente tentou
aceitar você com sangue nos olhos
como quem encara qualquer discussão como uma batalha
mortal como quem se defende a vida inteira
da madrasta que nunca te aceitou
e que você sem saber chamava de mãe
sem saber por que
ela te chamava de problemático
sem saber por que ela maltratava
só a você e não as meninas até que
as forças agressivas se formam nas narinas
nos olhos nas mãos nos músculos
a romper a brigar a gritar a socar
até o limite até às últimas consequências até
o golpe final
até que a única mulher que preste
neste mundo seja sua avó
mãe do seu pai seu herói
que te chamou de filho sabendo
que você não era proveniente de um espermatozoide dele
cuja mãe nunca soube do seu segredo
e morreu sem saber
te criando livre e solto te amando
como o varão da casa
o neto mais querido mais prestativo
o neto predileto da vovó
o único homem
dentre tantas mulheres
que também te rejeitaram quando souberam
que o ranzinza o briguento o encrenqueiro
o marrento o problemático
era dispensável
como a culpa que você carrega
como a violência que você compensa
a culpa que você carrega
e traz na violência repetida
em cada final exaustivo de nossas brigas
até que não nos reste mais nenhum fôlego
até que não saibamos mais o motivo inicial da briga
que se finda com a culpa
a culpa é sua
a culpa é sempre essa
que chega no final
a culpa é o que sobra
do passado engasgado que lateja nas suas têmporas
em todas as noites de insônia
que lateja nas suas narinas
nos seus dentes todas as partes do seu corpo
um dia só existiram na força bruta
e magnificente de doses de cocaína
a sensação doentia de se sentir autossuficiente
você continua poderoso suficientemente
seguro suficientemente forte
suficientemente tudo que ninguém é
suficiente só a culpa que extrapola
e que deveria ser a primeira a ser cuspida
como a culpa que eu não devo ter
se eu conseguir aceitar que o que eu gosto em mim
com você é acreditar que minha mão iria te salvar
de você mas eu estaria me condenando
se eu não lhe dissesse não
só por uma segurança que eu nunca tive
só pela mãe que aparento ser
só pela amélia não vagabunda que aparento ser
só pela fragilidade
que tenho que sou que aparento ter
se eu não lhe dissesse não
se eu não lhe dissesse que não quero ficar com você
só porque você é viril assim seguro assim
forte assim a puta que te pariu assim
tudo que na cara de cara eu não sou
então eu não poderia recomeçar comigo mesma
agora é a hora da batalha final

***

DIMENSÕES

uma dimensão totalmente nova
de forma coordenada disseram a quem
a poesia lança a voz há uma interrogação
aqui um abismo na fratura há uma infinidade
na outra face da linguagem no mutismo
de uma língua sem palavras o vazio há
quem diz dar vida ao vazio como quem dá forma
ao vazio para ser possível sobreviver mas
um vazio exposto ao qual não se dá contorno não se sabe como
o lápis não sustenta apenas um gesto assustadiço
de quem não consegue de quem já não pode de quem não
é de uma dimensão totalmente nova as agressões
em série disseram foi de uma forma coordenada
cerca de mil os fogos
cruzavam o céu frio de colônia anunciando
este novo ano quando uma onda
de agressões avançou contra os corpos de mulheres
propagando uma nova dimensão
em toda nova dimensão há um morar sem palavras
na língua apenas um acenar da impossibilidade
de falar da impossibilidade eu gostaria
de ter começado com o mundo inteiro
que vai ao meu encontro no momento
em que uma vida clandestina pulsa
dentro de mim no momento em que formas e cores invadem
o teto do quarto conforme o vento suga a cortina
um caminho inventado que se move em
baixa rotação o amor nesses tempos como uma forma de resistência
o começo de tudo uma dimensão sempre mínima posição periférica
nas coordenadas do mundo transitam os corpos que escorrem
no dia a dia em todas as direções os corpos vão
sob o sol na areia no hemisfério sul todos os outros sob o sol
estendido na areia como tudo que cai
e fica no chão o corpo do jadson morto na areia abre uma dimensão
apenas um nordestino morto quem seríamos nós
que já produzimos tantas pausas em domingos ensolarados agora
não há entrave não há nada no meio do caminho a vida escorre
em deslocamento todas as vozes tateando
um encontro qualquer um aceno um grito

***

ATÉ QUE UM POEMA ACONTEÇA

não vou fazendo a hora nem esperando acontecer
contrariando a canção vou repetindo
a hora não existe mais
hoje
todos matamos hora porque não aguentamos a repetição
hoje todos matamos a hora
porque tampouco sabemos da espera
acontece que um poema se faz
com as mãos como um protesto
se faz protestando um poema se faz
fazendo o tempo fora da hora encontramos
ainda a repetição até que
da repetição não aconteça
mais a espera até que
aconteça uma vida qualquer ainda que
aconteça de uma força violenta
como um tiro
nada cai do céu como o facebook pode ser o lugar
onde muitos poemas nascem ainda
esperamos muito
pelo poeta
para nascer ainda esperamos para viver
esperamos ainda para morrer
como numa guerra
espera-se por cartas
espera-se por bombas que deem fim
à espera na vida espera-se
por Deus a espera é infinita
e a dor é maior e mais real
porque finita
quando dizem que a espera é feminina
desde o início
o homem conquista
e a mulher espera
o voto conquistado há pouquíssimo tempo na história
a unidade mínima de tempo é
século
hoje todos são penélope
mas os homens ainda
os homens ainda
o homem encontra o feminino na espera
como numa guerra o homem encontra
o feminino você troca de lugar comigo
a partir do século XX
mas quem demorou a votar fomos nós
nunca antes na história se falou tanto em repetição
na poesia hoje a poeta fala da técnica
do cinema no fazer do poema
a repetição e o corte aqui
nós atados na linguagem
tentando fazer um poema ainda
depois de tanto tempo esperamos
o Bertolucci ser preso ainda
mas isso não vai acontecer
como não se ressuscita um morto
para responder pela vida
violentada em vida enquanto encenava
o espetáculo mais consagrado dos últimos tempos
toda uma vida estragada
pela arte uma mulher estuprada para sempre
a cada vez que alguém assiste
em cada tela a mesma cena
na vida real morremos
de repetição
eu me sinto mais morta agora
e eu só me sinto menos morta agora
porque em um longo tempo de espera
em que não consegui escrever nenhum poema
fiquei escrevendo repetidamente até que um poema aconteça
vou tentando escrever um poema
já que não posso matar uma pessoa
vou tentando escrever um poema
para ser salva pelo tiro que não posso disparar até que
saiu esse poema
histericamente
sinto dor por todos os lados
o corpo todo cortado
historicamente boiando nas ondas do mar
da eterna repetição da espera
a violência de um tiro não disparado
na vida real no corpo a repetição
do tiro disparado no final
do filme a morte do homem
pai e amante a tragédia
às vezes não realiza a vida
continua trágica até que
o tiro não disparado
atinge repetidamente nossos corpos
como o meu se debatendo convulsivamente
agora enquanto escrevo este poema
em movimentos repetidos só para enganar a ilusão
de que um dia não haverá mais a espera

***

TERROR

pensando nos poemas de yasmin nigri

extinção tem sido a palavra de ordem
nestes últimos tempos a violência
não vem do escuro
tudo está às claras
não mais se esconde por trás
da política a sombra da polícia
se mostra de frente por trás por todos os lados
as duas em uma por cima e
por baixo somos violentamente penetrados
por uma máquina de extermínio
hoje eu me pergunto se o mercúrio não tem estado
sempre retrógrado
não mais me pergunto onde a comunicação falha
ela não falha claramente ela acerta
o buraco no qual nos vemos lançados
a cada dia
o mundo vai mal
ando pensando que o último asteroide
aquele supostamente responsável pela extinção
dos dinossauros caiu aproximadamente
há sessenta e seis milhões de anos
segundo fontes duvidáveis como todas
deveriam ser
a maior das extinções
foi há duzentos
e cinquenta e um
milhões
de anos
e acabou
com cerca de noventa
a noventa e seis
por cento
das espécies
a extinção
seguinte a essa e imediatamente anterior
a dos dinossauros foi num intervalo
de aproximadamente cinquenta milhões de anos
então se a última foi há sessenta
e seis já passamos desse intervalo
tudo indica
que estamos ainda
com tempo
a velocidade da rotação da terra anda
ficando mais lenta também
cada dia mais isso não é bom
é uma espécie de extinção apesar de
o processo ser lento e ainda termos algum tempo
é inevitável
os dias são de guerra
há urgência
os poetas andam enxergando
sombras brancas rasgando o breu
em uma única visada
na sombra de um meteoro
cruzando o espaço a barbárie dos tempos
atemporal a colonização penetra
rasga invade a queda se anuncia nos olhos
que fitam o escuro à luz do dia
poucas coisas apontam para uma sobrevida
será que seremos lembrados
após a morte não precisamos de mais tempo
para saber que sobrevivemos ainda
com a poesia
é nela que convivemos intimamente
com corpos estranhos
dar corda no relógio e acelerar o tempo
não faz afastar da noite as sombras
que nos habitam resistentes
andamos nus como os poetas com os poetas andamos
nus porque andar
nu é andar tão somente com
corpos estranhos parir um poema
é parir às custas de si
não há mais o em si mesmo se
ser assombrado é uma sensação de morte
só o é porque é uma sensação de vida
o poema
acontece
no assombro porque é no assombro que nos vemos
fora de nós mesmos suspensos
no tempo e no espaço lançados
numa aporia incurável em que não distinguimos mais
eles de nós somos o engano
podemos morrer
abraçados à lágrima de não existirmos mais
mas na mesma visada as águas que escorrem trazem
também o naufrágio entre a possibilidade de morrer
dobrado sobre a lágrima
e a espera
de a lágrima congelar para ser possível
ir por cima dela por sobre ela entre
a possibilidade e a espera
o que há é a um só tempo
o terror
de naufragar
todas as horas da vida a decisão se impõe
em todas as horas da vida o ser que há incuravelmente
assombrado sobrevive
de braços dados com as sombras
o impossível que cria com o barco invelejável que parte de si o ser
é um blefe
o ser que existe aí para ser lembrado após a morte é um ser com
ela ou com ele porque alguém decidiu gostar
da possibilidade
de se dedicar
todas as horas da vida
à poesia
e gostar dessa possibilidade é gostar
de se dedicar
tão somente ao outro
na noite enquanto todos querem dormir
alguém desperta
e faz da noite
um despertar
todos os dias
meteoros caem e todos os dias
temos ainda algum tempo
uma foice avança
sobre as mãos de todos
os homens que se empenham em destruir em possuir
em governar nestes últimos tempos
é possível amar
diante do terror
do naufrágio
no instante imediato do terror dos tempos
caberia o amor
nas mãos o que não queremos preso
nestes últimos tempos
amar é se dedicar
ao que não queremos preso
nas mãos o coração eis o terror
quando amor
e terror
se entrelaçam
estamos falando daquilo que há de mais frágil
e precário
sabemos que ir ao amor
como ir aos escombros
do terror é ir sabendo da queda
irreparável muitas vezes incurável
em terreno esburacado
como quando fitamos a vida
sem lente sem filtro em sua nudez em tudo
há a possibilidade de ser
um sítio de guerra nestes lugares
onde se está de mãos dadas
com o fracasso não há ombro que salve
a linguagem falha
quando estamos lado a lado
com a ruína o peito
assume a forma de toda a extensão de um sítio frágil
quando amar é correr o risco
de naufragar
o terror de amar encontra o terror de naufragar
na iminência da mesma queda não há saída
tombamos inevitavelmente como quem cai
apaixonado
cair brusca ou brandamente
é apenas uma questão de tempo
para se ver caindo no real o terror
de amar é o medo de tombar
não há salvação enquanto a Terra não para
enquanto o asteroide não cai enquanto a extinção acontece
em todas as horas da vida alguém explode o tempo
como um meio de vida e como um modo de amar
isso sim é uma máquina de guerra

Porxmeyre

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