Que a literatura é un espazo verbal que permite coñecerse e recoñecerse mellor que case ningún outro, non é dicir nada novo, non, mais o certo é que tampouco se escoita/le demasiado, como se se dera por obvio. Obvio si, mais é preciso lembralo, é preciso. E o percorrido vital da poeta que hoxe escollemos para traer a estas páxinas demóstrao moi ben.
Lubi Prates naceu en 1986 en São Paulo. Estudou Psicoloxía e especializouse en Psicoloxía Reichiana. Polo momento coñézolle tres poemarios: Coração na boca (2012), Triz (2016) e Um corpo negro (2018). Fundamental este terceiro poemario. Porque Lubi Prates primeiro descubriu a maxia da poesía, mais é o terceiro poemario o que marca a asunción da súa condición de muller negra. Certamente, o camiño feminista xa o andaba mais faltáballe recoñecer o feiro diferencial de ser negra, que se consuma nese terceiro poemario, antes a súa non reflectía este decisivo pormenor. Quer isto dicir que a mentalidade branca se insire nos corpos negros do Brasil actual até o extremo de ficarem colonizados polas estruturas raciais brancas. Quere isto dicir que, no Brasil actual, actuar contra a invisibilidade d@s negr@s é una tarefa aínda urxente. E é una tarefa que Lubi Prates leva adiante día tras día, hora tras hora, porque non se pode perder un minuto. Porque a mesma Lubi recoñece que o movemento feminsta é racial, branco. Quen o diría dun Brasil onde viven tant@s nergr@s, mais é así, e sáese desa marxinalidade facendo visíbel o traballo d@s negr@s a través de palestas, encontros, xornadas, congresos… e libros, cantos máis mellor.
(Modestamente, agardamos que estes artigos de divulgación, que comezaron coas poetas negras e a elas volveron hai tempo, teñan algún tipo de virtualidade nesa tarefa, desde aquí, desde a Galiza, a solidariedade)
Mais volvamos sobre a poesía de Lubi Prates, a poeta; xa que da vítima vimos de falar.
Cómpre dicir que é una poesía valente. Que é una poesía revelación e marabilla, pois poesía revelación e marabilla só se atopan na mellor poesía. É importante a componente reflexiva, claro que é. Porque a súa poesía ten o valor da fascinación, do fulgor, do espontáneo, do revelado…e tamén da reflexión. É poesía denuncia e é poesía sentimento. Como tamén é importante a experimentación nos camiños expresivos ou estéticos, que tamén o é, tamén. Mais, na miña opinión a poesía de Lubi descríbea mellor ese fogonazo inspirador e o ronsel que o acompaña. Mais na miña opinión, a valentía de enfrontarse a un mundo masculino e branco de ideoloxía dominante…tamén ten que ser posto en valor.
Digamos tamén que entre as referencias da súa poesía tópanse nomes clásicos como Conceição Evaristo e outros moito máis recentes como o caso de Jarid Arrães (de quen xa escribios nestas páxinas, das dúas).
Digamos tamén que deu á luz una plaquette trilingüe (portugués, castelán, inglés) titulada De Lá/ Daqui. Que é socia fundadora da editora nosotros, da revista literaria Parênteses e que forma parte do Consello Editorial do selo CAROLiNA ( da editoa Linha a a Linhaa para escritoras negras) e da revista Deriva. E non me vou deter en festivais e eventos nos que participou. Apenas que se trata dunha poeta que xa sabe que o seu lugar é o mundo (solidariedade de clase e racial), atenta á actualidade poética internacional e dona dunha pericia técnica á hora de escribir que fai dela una autora moi lida, moi tida en conta e imprescindíbel
Digamos tamén que participou no Golpe-Antologia-Manifesto en defensa da democracia e en contra do bolsonarismo.
Mantén tamén presencia na rede, desde a súa bitácora.
E agora pasemos á súa poesía:
1.
você traz na boca
todo o gosto do mar
e eu tento adivinhar
inutilmente
quantos oceanos você atravessou
hasta aquí, hasta mi
quais oceanos você atravessou
hasta aquí, hasta mi
para guardar em si
tanta água, tanto sal
em cada gota de saliva.
você traz na pele
todos os tons da terra
e eu tento adivinhar
inutilmente
quantos continentes você percorreu
hasta aquí, hasta mi
quais continentes você percorreu
hasta aquí, hasta mi
para guardar em si
tanta cor & esse cheiro que acentua quando tempestades.
você diz reconhecer
o gosto de mar que trago na boca
os tons de terra que trago na pele
fácil perceber então que
atravessamos percorremos
os mesmos oceanos os mesmos continentes
hasta aquí
: somos filhos da África
e tudo que contamos através dos nossos corpos
fala sobre nós, mas no profundo da memória
guarda nossos ancestrais.
*
2.
nos tornamos maiores
que um continente
agrupamento de
quilômetros
de terra
apenas com nossos corpos
um sobre o outro.
nos tornamos maiores
que um continente
isolados por oceanos
ou riscando fronteiras entre
tudo que era nosso e
o resto.
nos tornamos maiores
que um continente
e não precisamos de
guerra fincar bandeiras
colonizar o outro dizer
esse território é meu.
nos tornamos maiores
que um continente e
inventamos
um idioma próprio.
nos tornamos maiores
que um continente.
nos tornamos maiores
que um continente e
sequer percebemos quando
nossas terras secaram e
surgiu a rachadura
a fresta existente entre as minhas pernas ficou profunda
até alcançar as águas possíveis
de movimentar as placas tectônicas
as águas possíveis
de separar os corpos
as águas tão inconscientes
abaixo do lodo que temos todos.
nos tornamos maiores
que um continente e
prevejo
demorará séculos milênios
para matarmos nossa civilização.
nos tornamos maiores
que um continente e
prevejo
demorará séculos milênios
para alcançarmos a distância que existe
entre África e América Latina.
*
3.
este poema
não diz seu nome
este poema
não diz se veio
este poema
não diz seus atos
este poema
não diz seu nome
este poema
não diz a matéria
da qual é feito
a matéria que desaparece
quando nossos corpos
se chocam.
este poema
não diz seu nome,
é você
porque é ausência.
…………………………………………..
ser mulher é uma bênção
ser mulher é poder gerar & poder parir
ser mulher é ter buceta, dois seios, uma bunda grande
ser mulher é
ser loira, olhos claros, nunca descabelar-se
é ter sangue escorrendo entre as pernas & não deixar que percebam mesmo que
você corra
você nade
você dance
ser mulher é uma bênção
e desde a Bíblia é ser apedrejada queimada morta
uma contradição
eu descobri agora que
não sou mulher
estou viva
nunca queimada
nunca apedrejada
eu descobri agora que
não sou mulher
sou negra, sou apenas uma negra
e o sangue que vem do meu ventre
permito que seja rio
que volte pra terra e
corro
nado
danço
descabelo-me
eu descobri agora que
não sou mulher
eu tenho pinto
apenas um seio
quadril estreito
nunca pari
eu descobri agora que
não sou mulher
ser mulher é uma bênção.
para este país
para este país
eu traria
os documentos que me tornam gente
os documentos que comprovam: eu existo
parece bobagem, mas aqui
eu ainda não tenho esta certeza: existo.
para este país
eu traria
meu diploma os livros que eu li
minha caixa de fotografias
meus aparelhos eletrônicos
minhas melhores calcinhas
para este país
eu traria
meu corpo
para este país
eu traria todas essas coisas
& mais, mas
não me permitiram malas
: o espaço era pequeno demais
aquele navio poderia afundar
aquele avião poderia partir-se
com o peso que tem uma vida.
para este país
eu trouxe
a cor da minha pele
meu cabelo crespo
meu idioma materno
minhas comidas preferidas
na memória da minha língua
para este país
eu trouxe
meus orixás
sobre a minha cabeça
toda minha árvore genealógica
antepassados, as raízes
para este país
eu trouxe todas essas coisas
& mais
: ninguém notou,
mas minha mala pesa tanto.
condição: imigrante
1.
desde que cheguei
um cão me segue
&
mesmo que haja quilômetros
mesmo que haja obstáculos
entre nós
sinto seu hálito quente
no meu pescoço.
desde que cheguei
um cão me segue
&
não me deixa
frequentar os lugares badalados
não me deixa
usar um dialeto diferente do que há aqui
guardei minhas gírias no fundo da mala
ele rosna.
desde que cheguei
um cão me segue
&
esse cão, eu apelidei de
imigração.
2.
um país que te rosna
uma cidade que te rosna
ruas que te rosnam:
como um cão selvagem
esqueça aquela ideia
infantil aquela lembrança
infantil
de sua mão afagando um cão
de sua mão afagando
seu próprio cão
ficou em outro país
ironicamente, porque a raiva lá
não é controlada
aqui, tampouco:
um país que te rosna
uma cidade que te rosna
ruas que te rosnam:
como um cão
: selvagem
………………………………………………
mátria e/ou terra-mãe
repetem repetem
mátria
com tanta certeza
como se a palavra
existisse
no dicionário
o último lugar de validação.
mas não é mãe
se permite
que te arranquem
o solo e os pés
no mesmo instante
não é mãe
se inventa um navio
quando te jogam
ao mar
se força as ondas
pra que chegue
mais rápido
ao desconhecido
não é mãe
se permite que grite
até a rouquidão
mas num idioma
que ninguém compreende.
repetem repetem
mátria
com tanta certeza
como se a palavra
existisse
no dicionário
o último lugar de validação.
de onde eu vim
pra onde sempre vou
eu chamo pátria.
não foi um cruzeiro
meu nome e
minha língua
meus documentos e
minha direção
meu turbante e
minhas rezas
minha memória de
comidas e tambores
esqueci no navio
que me cruzou
o Atlântico.
…………………………
arrancaram meus olhos
e cada pelo do meu corpo,
cortaram minha língua.
arrancaram unha a unha,
dos pés e das mãos.
cortaram meus seios e o clitóris,
cortaram minhas orelhas,
quebraram meu nariz.
encheram minha boca e os outros vácuos
de monstros:
eles devoraram tudo.
só restou o oco.
então, eles comeram este resto,
limparam os beiços.
depois, vomitaram.
…………………………
………………………………
localizar no meu corpo
com uso de coordenadas
um ponto para acomodar esta dor.
um ponto exato para acomodar esta dor
onde ela já não doa tanto
até diminua
talvez se autodestrua
e eu sequer perceba.
localizar no meu corpo
com uso de bússola
um ponto para acomodar esta dor.
mas esse território que sou
quase inteiro marcado riscado avolumado
por cicatrizes se mapeou.
localizar no meu corpo
com uso deste mapa
um ponto para acomodar esta dor.
um ponto exato para acomodar esta dor
um ponto entre esse rasgo do norte da minha boca
e o sul do meu ventre
um ponto entre as feridas do leste e oeste esquecidos nas pontas dos meus dedos
um ponto desocupado entre minha cabeça e os pés
para acomodar esta dor
onde ela já não doa tanto
até diminua
talvez se autodestrua
ou eu apenas esqueça.
Para João Gabriel Oliveira.
…………………………………………………..
você está na Rússia
onde sempre quis estar.
você está na Rússia
onde eu nunca estive.
assim, eu não posso precisar
a temperatura do seu corpo
neste inverno. assim, eu não posso precisar
se o branco do seu corpo, tão conhecido,
se confunde com a paisagem que você escolheu
e não sou.
você está na Rússia
onde eu nunca estive.
assim, eu não posso precisar
se as suas lágrimas
caso caiam
serão quentes, como aquelas que eu lambi, ou
imitarão flocos de neve indo ao chão.
você está na Rússia
onde sempre quis estar.
e eu continuo no Brasil
mas é um Brasil
que você jamais conheceu.
assim, você não pode precisar
se aqui agora minha carne apanha.
assim, você não pode precisar
se minha carne ainda tem aquela cor bronze possível em
30 graus ou se já é aquela carne apodrecida por resistir.
você está na Rússia
onde eu nunca estive.
e eu continuo no Brasil
mas é um Brasil
que você jamais conheceu.
assim, você não pode precisar
se caem lágrimas, quentes ou frias
dos meus olhos. assim, você não pode precisar
se é uma secura sem fim
embora não faltem motivos e ou vontade
de chorar.
você está na Rússia
onde sempre quis estar,
onde eu nunca estive.
eu continuo no Brasil,
um Brasil que você jamais conheceu.
……………………………
1.
te dou de comer
na palma da minha mão.
é ancestral
o gesto de agachar,
se reconhece:
me curvo ao chão
então, você vem,
faminto.
não distingue
entre o que é comida
e quem eu sou.
penso domar a fera,
as pontas dos meus dedos se vão.
não distingo
se é dor ou prazer
me transformar em seu alimento.
voltarei amanhã,
você sabe.
2.
sequer havia luz,
mesmo assim,
aprendi a te alimentar
primeiro.
antes de qualquer verbo
ou nome:
não havia chamado,
ainda não há.
embora sequer houvesse luz
e tendo, ainda, olhos
preservados por você,
me guiei pelo cheiro da sua boca
entreaberta.
agachado,
com minha pata de bode,
te dou de comer
antes de seguir, veloz.
3.
esse chão
criamos nós
a partir do nada que havia:
era apenas linguagem.
na palma da sua mão
dei o que eu tinha,
cuspi a palavra terra
que você moldou com sua saliva.
fez-se lama.
nomeamos assim,
essa porção ínfima
onde deitamos.
4.
quando forte,
você se antecipa.
reproduz meus gestos
com uma velocidade maior.
trama uma fuga.
quando você passa,
eu lanço a pólvora.
o fim te alcança
ainda preso a mim.
aqui, agora,
explosão
diante dos nossos olhos.
5.
sobre a lama onde deitamos,
passou tempo.
confundimos
passado presente futuro:
aparentam ser o mesmo.
na lama onde deitamos,
criaram-se frestas,
nelas, imaginamos caminhos.
surgiram tantos outros iguais a nós.
abri uma encruzilhada
e te coloquei no meio.
de costas, esperei que seguisse.
§
encontrar você
como uma revisitação.
eu volto à casa onde cresci
diferente
da infância.
não há ninguém,
só você.
eu não guardei as pistas do caminho
e meus pés souberam o retorno,
o que existe é memória:
as paredes já não são as mesmas
mas sustentam os velhos quadros
impossíveis de decodificar,
eu apenas te mostro.
a luz elétrica falha
assim como o tempo.
……………………………………
até só restar o depois
(sobre o dia 29 de abril, em Curitiba)
pudesse,
recordaria se havia sol
antes daquela tarde
quando tudo se resumiu a
cinza:
fumaça, um
quase
aquele estado de consciência frágil
entre estar acordado &
desmaiar.
pudesse,
recordaria o cheiro
antes daquela tarde
quando tudo se confundiu a
gás
pólvora
sangue.
recordaria quais eram
minhas atividades inúteis
antes de acessar a internet &
navegar entre as notícias
para descobrir o alvo
dos helicópteros que
sobrevoavam a cidade
destruindo
destruindo
destruindo
qualquer segundo
de silêncio
inibindo os gritos
pudesse,
eu recordaria o antes:
quando não havia escombros.
……………………………….
trinta e cinco dólares
um corpo que
estabelece o limite
com o outro
ser
um corpo que
é membrana e
ampara
a personalidade
um corpo que
guarda os escapes
da mente
assim como
o contrário:
tudo que acontece
no corpo chega
às camadas psicológicas.
como pensar um corpo
que é tocado
dominado
invadido
destruído:
é saber o corpo
de uma mulher:
mutilado
estuprado
vendido
na África,
todo clitóris
é cortado
para que
nenhuma mulher
sinta prazer.
na África, também
as meninas ainda meninas
apertam seus seios
para que pareçam
meninos e
não sejam invadidas.
como pensar um corpo
como saber o corpo
de uma mulher:
no Brasil,
trinta e três
homens
estupraram uma mulher.
ainda, no Brasil, a cada
onze minutos
uma mulher
é estuprada
mas não fala-se
a respeito
parece natural.
como pensar um corpo
como saber o corpo
de uma mulher:
a cada ano, dois milhões
de mulheres
são vendidas
cada mulher custa
trinta e cinco
dólares.
eu não estou
à venda mas
o que eu custo:
trinta e cinco
dólares.
como pensar um corpo
como saber o corpo
de uma mulher:
apenas carne.
*
Esculturas Musicais 11 – Lubi Prates
até só restar o depois
(sobre o dia 29 de abril, em Curitiba)
pudesse,
recordaria se havia sol
antes daquela tarde
quando tudo se resumiu a
cinza:
fumaça, um
quase
aquele estado de consciência frágil
entre estar acordado &
desmaiar.
pudesse,
recordaria o cheiro
antes daquela tarde
quando tudo se confundiu a
gás
pólvora
sangue.
recordaria quais eram
minhas atividades inúteis
antes de acessar a internet &
navegar entre as notícias
para descobrir o alvo
dos helicópteros que
sobrevoavam a cidade
destruindo
destruindo
destruindo
qualquer segundo
de silêncio
inibindo os gritos
pudesse,
eu recordaria o antes:
quando não havia escombros.
*
*
trinta e cinco dólares
um corpo que
estabelece o limite
com o outro
ser
um corpo que
é membrana e
ampara
a personalidade
um corpo que
guarda os escapes
da mente
assim como
o contrário:
tudo que acontece
no corpo chega
às camadas psicológicas.
como pensar um corpo
que é tocado
dominado
invadido
destruído:
é saber o corpo
de uma mulher:
mutilado
estuprado
vendido
na África,
todo clitóris
é cortado
para que
nenhuma mulher
sinta prazer.
na África, também
as meninas ainda meninas
apertam seus seios
para que pareçam
meninos e
não sejam invadidas.
como pensar um corpo
como saber o corpo
de uma mulher:
no Brasil,
trinta e três
homens
estupraram uma mulher.
ainda, no Brasil, a cada
onze minutos
uma mulher
é estuprada
mas não fala-se
a respeito
parece natural.
como pensar um corpo
como saber o corpo
de uma mulher:
a cada ano, dois milhões
de mulheres
são vendidas
cada mulher custa
trinta e cinco
dólares.
eu não estou
à venda mas
o que eu custo:
trinta e cinco
dólares.
como pensar um corpo
como saber o corpo
de uma mulher:
apenas carne.
*
*
…………………………………..
*
*
Esculturas Musicais 11 – Lubi Prates
até só restar o depois
(sobre o dia 29 de abril, em Curitiba)
pudesse,
recordaria se havia sol
antes daquela tarde
quando tudo se resumiu a
cinza:
fumaça, um
quase
aquele estado de consciência frágil
entre estar acordado &
desmaiar.
pudesse,
recordaria o cheiro
antes daquela tarde
quando tudo se confundiu a
gás
pólvora
sangue.
recordaria quais eram
minhas atividades inúteis
antes de acessar a internet &
navegar entre as notícias
para descobrir o alvo
dos helicópteros que
sobrevoavam a cidade
destruindo
destruindo
destruindo
qualquer segundo
de silêncio
inibindo os gritos
pudesse,
eu recordaria o antes:
quando não havia escombros.
*
*
trinta e cinco dólares
um corpo que
estabelece o limite
com o outro
ser
um corpo que
é membrana e
ampara
a personalidade
um corpo que
guarda os escapes
da mente
assim como
o contrário:
tudo que acontece
no corpo chega
às camadas psicológicas.
como pensar um corpo
que é tocado
dominado
invadido
destruído:
é saber o corpo
de uma mulher:
mutilado
estuprado
vendido
na África,
todo clitóris
é cortado
para que
nenhuma mulher
sinta prazer.
na África, também
as meninas ainda meninas
apertam seus seios
para que pareçam
meninos e
não sejam invadidas.
como pensar um corpo
como saber o corpo
de uma mulher:
no Brasil,
trinta e três
homens
estupraram uma mulher.
ainda, no Brasil, a cada
onze minutos
uma mulher
é estuprada
mas não fala-se
a respeito
parece natural.
como pensar um corpo
como saber o corpo
de uma mulher:
a cada ano, dois milhões
de mulheres
são vendidas
cada mulher custa
trinta e cinco
dólares.
eu não estou
à venda mas
o que eu custo:
trinta e cinco
dólares.
como pensar um corpo
como saber o corpo
de uma mulher:
apenas carne.
*
*
*
*