Como di Danielle Magalhães, “a política non está á altura da poesía”
Nunca o estivo. Mais convén lembrar, é necesario lembrar…
Resta saber a que altura está a política vedadeiramente, aínda que podemos imaxinalo. Tanto ten deste lado do Atlántico como no Brasil, a política é a arte de tratar resolver cousas cando a sociedade xa comezou a facelo. ( Ou a promover negocio privado con cartos públicos). de É a niña opinión. Por iso, e porque nunca no Brasil houbo tantas mulheres poetas, e dunha calidade máis que notábel, quizá algún día a política repare e comece a propiciar que as mulheres poetas teñan un moito mellor acceso á publicación dos seus textos, porque na actualidade o recurso á autoedición, mesmo o recurso a crear editoras para poder publicar, é excesivamente habitual mesmo con poetas dunha calidade máis que notábel, como afirmamos. Non digamos xa no mundo negro, onde a poesía falada, cantada, representada trata de evitar estas dificultades así, e chegar ao publico de maneira masiva -non é o ideal, porque a poesía oral permite moi pouco a reflexión.
E entre estas mulleres poetas, o máis común é a poesía denuncia. Denuncia, unha palabra que, polo que teño lido, non se escribe moitas veces. No caso particular de Bruna Mitrano, a súa denuncia é constante, como comprobarán na selecta que virá a seguir. Na súa poesía hai un fondo de angustia vital que non se expresa nas reducidas marxes da palabra ou das situacións angustiosas, agoniantes. Estoupa, rebélase, é unha poesía en constante estado de guerra, de confrontación contra esa idea machista de que a muller é un pedazo de carne para o seu gozo. E é tamén un grito visibilizador da muller e a súa problemática vital. Observen como en certos poemas existe unha proximidade clara á crónica. É como se a poesía de Bruna Mitrano fora a poesía negra da situación da muller, botando man do xénero negro (narrativa) e aplicándoo comparativamente á poesía.
Bruna Mitrano (1985) naceu e mora na periferia de Rio de Janeiro. A poesía de Bruna Mitrano é pois, unha poesía favelada, que é maís que unha poesía da favelada, porque é unha poética da brutalidade que sofre a muller. Porque desde a favela, desde a periféria, tamén se pode alcanzar a universalidade. E ten máis valor, na niña opinión, porque as circunstancias non son as máis propicias para a poesía. Bruna leu o primeiro libro de poesía aos 17 anos, por sinal…
Xa no 2010 estivo entre @s vencedores do OFF-FLIP. Que non é pouca cousa.
No 2016 deu á luz o poemario Não, na Editora Patuá. E non é un poemario calquera, non é un poemario de iniciación. Hai aí, nos seus poemas unha exquisita perfección formal. Observen, por sinal, que con bastante frecuencia os seus poemas admiten dúas lecturas: a lectura normal, de arriba a abaixo; e a lectura inversa, de abaixo para arriba. Sen que por iso se perda contido denunciador ou se modifique o contexto en que se emite a denuncia. Iso é cousa que acontece moi poucas veces no mundo da poesía, é é sinal dunha exquisita perfección formal. Se se quer, mesmo se pode falar de formalismo do século XXI.
Não é un campo minado de poesía-bomba a estoupar nas conciencias dunha sociedade que non sabe valorizar xustamente a muller como persoa con todos os dereitos que como human@s debemos ter.
Resta dicir que Bruna tamén traballa no campo do deseño, polo que os seus poemas ás veces establecen un diálogo moi a ter en conta, coa súa poesía.
Para quen queira seguila, este é o seu Facebook https.
Como lle lin precisamente no Face: “não acredito na fé de quem nunca passou fome.”
Pois, para non perder nada da vida, non acrediten na fe de quen nunca le poesía.
Como sempre, non recollemos as prosas poéticas, son outro xénero.
E agora, aí vai a selecta:
( En Poesía primata)
na estrada de terra
da cidade vazia
a criança preta empunha um pedaço de pau.
ela está nua e vê-se um corpo tão prematuro
quanto ruínas.
a boca intumescida da criança preta gutura
morte ao rei!
e na aridez inalcançável dos pés descalços
resiste
a criança tão criança e velha,
sozinha e livre –
o sino da igreja abandonada toca todo dia na hora errada.
( En Ruído manifesto)
houvesse a negativa
a rouquidão da mãe
seu dorso
os pelos revolvidos
aqueles dedos talvez
mas duas ou três historinhas mixurucas
e o oitavo branco esquimó.
gelo na língua: a cara lisa, lagrimando brasa, em riso esquizo cacarejento estala, essa dor do cão!
*
amarra pendura deixa pingar
que a terra seca apaga a última gota –
a galinha me olha de um olho só
ciclope de ladinho frango assado papai e mamãe
e o açougueiro gargalha
se sacode todo mole
tem larva na carne fresca e
não tem graça nesse lugar.
*
a impertinência da cura.
arrancaram meus caninos,
tenho as gengivas suturadas à mostra.
de medo: tormenta
[mãos de pólvora afagando o fogo]
………………
tem espinhos na língua.
o encontro é quando lambe o racho da minha sola.
até que o primeiro lapso nos levante às pressas –
ensacamos entulhos com sutilezas de rancor.
nada que despossuímos sobrevive ao que gestamos.
é nesse escuro lúcido que soldamos as carnes?
sim, estaremos sempre sozinhos –
guardo nossos segredos com muitas mãos,
seu sangue seco nas minhas coxas.
(En Mulheres que escrevem)
lembra quando eu subi na janela
fiquei de pé e chovia
eu quis que você tivesse medo
e me pegasse por trás como fazem os policiais com os suicidas da golden gate
mas você fez o santo de rabo de olho
a boca caiu o cabelo cobriu a testa
eu não entendo eu quis entender
o pau duro na minha bunda criança o que era aquilo
os pelos grossos e o hálito pesado do trabalho sujo
agora é a fila do mercado e o celular despertando
a parte que escapa
à rotina:
café com leite arroz tipo 1 sexo com o vizinho
segredos cimentados nas calçadas dos subúrbios –
o homem ainda estava com o rosto deitado nas minhas pernas
feto de pele velha ossos largos pelos brancos
quando eu disse eu não mais darei nomes aos meus filhos
e eles não mais serão escravos.
…………………
( En Poemargens)
* * *
gestação infinita
o filho podre a filha cerca viva
meu útero arregaçado expelindo medo em sangue
porque é meu horror que gero –
sei me ferir.
* * *
tem espinhos na língua.
o encontro é quando lambe o racho da minha sola.
até que o primeiro lapso nos levante às pressas –
ensacamos entulhos com sutilezas de rancor.
nada que despossuímos sobrevive ao que gestamos.
é nesse escuro lúcido que soldamos as carnes?
sim, estaremos sempre sozinhos –
guardo nossos segredos com muitas mãos,
seu sangue seco nas minhas coxas.
* * *
eu deitada em desmanche e você de pé, distante, cabeça cur-
vada triplicando o queixo, um embaço e eu não reconhe-
ceria, não fossem as pernas abertas, os pés roçando meu
quadril, seu pau ao centro tomando proporções desmesura-
das, um pau maior que o corpo, maior que eu, que sangro e
sangro muito, e meu sangue é vivo porque é sangue de quem
se aborta, é sangue de quem implodiu e é arrancada a fór-
ceps, eu que por precaução não desvio os olhos do seu pau,
um deus que impele a ser tocado com terror mas, se não me
restam mãos, olho, você se masturba com ódio de si, eu que-
ro fechar os olhos pra não amar o seu ódio de si, consegue
enxergar meu asco agora? sua cara de domingo cozinhando
arroz integral, se eu dissesse que existir tem sido insuportá-
vel, me mataria? você diz que foram minhas somente mi-
nhas alucinações, mas já não acredito na verdade do seu cor-
po e por isso não deixo de te olhar com olhos enormes, apa-
vorados, olhos que não posso fechar, olhões você disse tão
grandes, menores que esse medo que arrebenta a carne em
gritos, gritos que não chegarão até você, de pé, distante, co-
mo um deus ou tormenta.
* * *
gargalhou outra vez sem motivo.
tivesse língua,
lamberia o bico da 38 spl carregada,
pra deixá-la ainda mais aguda,
a noite.
ela,
morreria já a essa hora?
danço.
……………………….
( Na Gueto)
*com Nick Drake
toda noite deus puxa meu cabelo
única parte não imersa
até arrancar a pele do rosto
não tenho mais espelhos
please give me a second face
a voz engasgada de nick
toda noite ouço a louca fugiu
e agarrou desconhecidos dizendo
olha minha garganta está fechada
e meus dentes foram colados
eu que não tenho mais dentes
como a minha avó
chupando ossos de galinha
please play me your second game
toda noite a menina grita o pai
lambeu o lóbulo da minha orelha
e a mãe lembra que é preciso
esquecer que a louca que o pai que
a mãe nunca lembrou
de acordar a menina pra escola
please tell me your second name
toda noite vem o homem
vestido de branco e
conto a ele do pintor
que disse não gosto de aquarela
é impossível domar a água
que foi o pintor com quem vivi
que foi o pintor que me bateu
num hotelzinho na angélica
please give me a second grace
toda noite vem o homem
vestido de branco e
digo a ele
é impossível domar a água
I just sit on the ground in your way
o homem vestido de branco
anota a minha doença num papel.
………………………..
(En A bacana)
quando você chega à idade
que te permite entrar
em novos cômodos
que te permite entrar
no banheiro com banheira por exemplo
descobre que as paredes da casa
da patroa não são tão brancas
quanto você acreditava
quando brincava com medo
de sujar as quinas
ou a bancada de mármore –
você pensava é uma grande pedra preciosa
quem dera eu tivesse um pedaço
de tudo que eu posso tocar
com a mão lavada
quando você chega à idade
que te permite
embora o corpo inexperiente
o braço fraco ainda
estender o edredom com peso de dois
do patrão com peso de três
ou mais suores
descobre marcas quase invisíveis
como manchas de iogurte
que nem a máquina de lavar
nem a mão grossa da sua mãe
conseguiram apagar
quando você chega à idade
de recolher as toalhas usadas
vê o encardido nas pontas
e percebe
esfregando as toalhas
(parecem de pelúcia)
no rosto
(parece de criança)
que sua mãe está velha
pra satisfazer os desejos dos donos
da casa e que logo será você
a satisfazer os donos
da casa que dizem é também sua
mas que você nunca conheceu inteira
nem nunca subiu na cadeira
brincando de a mestra mandou
coroada de raízes do quintal –
a cadeira, o chão, as paredes, os cômodos todos
sujos de terra.
*
sentei perto dos urubus
o homem que passava disse
eu tenho nojo de você
expliquei a ele que os urubus
procuram na carcaça
as partes moles e quentes
ele deu as costas xingando
e sacudindo as mãos
olhei pros urubus
eles também me olharam
complacentes com aqueles
olhos sem branco
o homem o seu corpo inquieto
era como o animal que
esperneia antes de morrer
sabíamos no entanto que ele
não morreria que ele estava
mais vivo que nós que não
temos mãos nem pedras
nas mãos pra atirar em quem
nos causa repulsa apenas
alguma intuição de encontrar
partes moles e quentes.
*
a câmera em close na velha
a pele rachada do rosto em contraste
com a pele mole dos braços
do vestido se vê os ossos do peito
os seios dois sacos vazios
pendendo sobre a barriga
a câmera abre
vê-se um repórter com camisa de botão
de cor tão clara como sua pele tão clara
o repórter parece um erro
na casa de taipa
a velha mexe a sopa com uma colher de pau
é sopa de quê
de papel
close nos olhos de espanto
do repórter que já sabia a resposta
por que a senhora está cozinhando papel
porque não tenho comida
mas por que a senhora está cozinhando PAPEL
o repórter repete
pra causar nos telespectadores
aquele nó na garganta
porque tenho filhos e netos
diz a velha esticando o pescoço
onde guarda uma garganta
aparentemente sem nó
aparentemente sem constrangimento
de dizer a própria fome
a câmera passeia pela casa
panelas e canecas empilhadas
um instrumental triste
e o narrador dizendo que três semanas depois
a velha morreu
andei de um lado pro outro
o que foi garota
não pode acabar assim
não é um filme é a vida real
e na vida real
eu tinha seis anos
eu não conhecia o gosto do papel
por que o repórter não deu comida pra velha
porque ele não tinha comida com ele
por que não voltou pra dar comida
porque ele mora longe
por que não mandou pelo correio
porque não se manda comida pelo correio
por que ele não pegou comida na casa longe dele
e voltou pra dar pra velha
ora porque ele tem mais o que fazer
então por que ele foi na casa dela
hã
se ele tem mais o que fazer
close no rosto passivo da minha mãe
é assim a vida é assim
mas ela morreu
todo mundo morre
não quero morrer com esse engasgo
que engasgo
não sei deve ser o papel
na escola passei a brincar de comidinha
socava folhas de caderno na panela de plástico
tá cozinhando o quê
perguntou a colega chata
papel
dã tô perguntando o que você tá cozinhando
de mentirinha
papel
eu tô brincando de verdade
ela virou os olhos
e saiu cantando
uma música alegre
eu bati nela
close na cara de espanto da diretora
ela diz não esperava isso de você
tão boa aluna tão quieta
por quê
porque ela estava alegre
e qual o problema de estar alegre
o problema é que o narrador disse que a velha morreu de desnutrição
mas eu acho que ela morreu foi de fome
close na cara de todos
um por vez segurando
o riso de deboche
tão boa aluna tão quieta mas doida coitada
igual a mãe.
…………………….
( Na Escamandro)
houvesse a negativa
a rouquidão da mãe
seu dorso
os pelos revolvidos
aqueles dedos talvez
mas duas ou três historinhas mixurucas
e o oitavo branco esquimó.
gelo na língua: a cara lisa, lagrimando brasa, em riso esquizo cacarejento estala, essa dor do cão!
§
o garoto corre de chinelo,
depósito de ânsias apreendidas ou
ainda a convulsão de quem nada tem.
olhos graves lama-mangue
na cara preta salpicada de farelo de biscoito.
o garoto tão pequeno já sabe andar de ônibus –
livrai-nos do mal, mãe, dá conta santificada de seus filhos
e o bebê carrega sobre a barriga redonda como se nunca tivesse saído –
sozinho:
um homem construiu sua casa com as próprias mãos.
demoliram a casa e ergueram um muro.
§
quando ela fechou as pernas
a cigarra estourou de gritar
vinha de dentro
um silêncio que não se quisesse ver
um cabelo bruto
uma coisa boa macassá
quero me enfiar nele
naquele silêncio –
um bicho se olha pro outro enquanto come, é sobrevivência
não é competição.
§
a impertinência da cura.
arrancaram meus caninos,
tenho as gengivas suturadas à mostra.
de medo: tormenta
[mãos de pólvora afagando o fogo]
§
ela pediu pra eu não enlouquecer
parei de tomar os remédios pra tentar ser gente
mas uma chuva forte caiu
era janeiro
e me escorreguei
perdi o senso
disseram
é temporário
os tremores noturnos
a matriz de uma ânsia descabida
os rostos na janela
todas as noites
os rostos que catequizam as janelas
nas casas sem muro
não há o que se ver que não sobrecarregue a carne
o corpo ainda sente
curva-se ao inevitável
tomba no meio da rua e conclui
não se dá as costas pra morte
há sempre um diagnóstico
preto no branco
vou morrer de tempo ou
vou fazer o quê?
re:___________________.
§
tem espinhos na língua.
o encontro é quando lambe o racho da minha sola.
até que o primeiro lapso nos levante às pressas –
ensacamos entulhos com sutilezas de rancor.
nada que despossuímos sobrevive ao que gestamos.
é nesse escuro lúcido que soldamos as carnes?
sim, estaremos sempre sozinhos –
guardo nossos segredos com muitas mãos,
seu sangue seco nas minhas coxas.
§
rasgava a camisa com os dentes
a raiva desnudada de pavor
e se deixava à beira –
como adestrar a mão convulsa?
o mijo morno entre as cobertas era como peitos grandes pietá
aninhava-se no turbilhão do que era
reconhecia
seu corpo
erguendo à boca a própria armadilha
e lembrava das frutas que nasceram podres
as que nasceriam pra sempre.
§
choque
uns passos
segundo plano
acho que vi um milagre!
acho que vi!
as mãos estavam vazias
quando o homem louco
aos berros no meio da rua
esclareceu
o último gole
a raiva ainda alinhada –
é difícil, ele disse,
morrer.
………………….
(Na Gueto)
Imprecacão
que a chuva poupe as telhas pobres
e mais nada.
*
dois pra lá
gargalhou outra vez sem motivo.
tivesse língua,
lamberia o bico da 38 spl carregada,
pra deixá-la ainda mais aguda,
a noite.
ela,
morreria já a essa hora?
danço.
*
hoje fez dia mas ela disse
será de morte cada hora canta
a música perdida na infância
coloca o rosto entre meus peitos
de mãe preta e sente o cheiro
da casa que nos roubaram.
*
nasci com dentes podres
coisa de família
minha avó ficou banguela aos 26
os tios todos têm dentadura
criança diziam tão bonita mas assim
não vai arrumar namorado
eu não queria arrumar namorado
arrumei nove ossos quebrados
ossos fracos coisa de família
disseram bruna você parece que pode
partir ao meio a qualquer momento
eu quebrei muitas vezes
mas ninguém quis ver
que não quero namorados
e que meu mau hábito de
não escovar os dentes é por
que nunca paro de comer
porque o que sinto não é fome
é o sentimento da fome que talvez seja
coisa de família nunca entendi
o que é essa coisa de família.
*
o garoto corre de chinelo,
depósito de ânsias apreendidas ou
ainda a convulsão de quem nada tem.
olhos graves lama-mangue
na cara preta salpicada de farelo de biscoito.
o garoto tão pequeno já sabe andar de ônibus —
livrai-nos do mal, mãe, dá conta santificada de seus filhos
e o bebê carrega sobre a barriga redonda como se nunca tivesse saído —
sozinho:
um homem construiu sua casa com as próprias mãos.
demoliram a casa e ergueram um muro.
……………….
( En Anarquivoo)
quando eu era criança
o meu pai esfregava o pau
na minha bunda
e depois chorava
ele sempre chorava
pedindo desculpas
quando eu era criança
o meu pai cuidava de mim
me ensinava a ler
a andar de bicicleta
porque a minha mãe
estava muito ocupada
sendo deprimida
o meu pai nunca deprimia
mesmo cansado do bife
trabalhar dezoito horas
como motorista de ônibus
chamava bife
o meu pai toda noite
ia no meu quarto
e dizia te amo filha
lambendo a minha orelha
uma vez mordeu
tão forte que sangrou
ele chorou e pediu desculpas
eu disse não dói pai não fica triste
e o meu pai chorou mais
depois que eu disse não chora
eu não entendi
eu não entendo
por que estou quebrando
linhas se isso não é um poema
é uma denúncia inútil
agora que o meu pai é velho
e não cuida mais de mim.
………………….
(Na Folha de São Paulo)
I
na infância o sacolejo do ônibus
me dava enjoo
minha mãe me batia se eu vomitava
na roupa nova custou os olhos da cara
aprende garota
pra te valorizarem
é preciso estar bem-vestida
mais tarde manchas na camisa
e um objeto de remorso
você lembra com que idade
deixou de enjoar nas viagens?
você lembra com que idade
deixou de ter pra onde voltar?
gostava que ela ainda estivesse
me esperando no pé da escada
agora é o menino que suja
as roupas que puxa do varal
e resmunga quando cai
a camisa úmida na cara
agora sou eu que finjo
saber o que estou fazendo
enfiada num vestido velho
ralhando com o menino
toda tarde
o mesmo enjoo
e gostava que ela soubesse
que ainda pulo o último degrau
inclinando o corpo pra frente.
[Rosa cresceu num barraco de madeira sem banheiro. Aos onze anos, apanhou da tia por confundir o bidê com a privada. Rosa ou Rosângela Araujo Antonio é a minha mãe.]
…………………
II
a minha avó roubava leite
pra dar aos filhos
porque seus peitos empedraram
porque a sequidão é a sina
das mulheres da família
a minha avó roubava leite
por culpa
pela maternidade
que seu corpo descumpria
a minha avó até bem velha
dizia olha a minha língua
não tem saliva
por isso não consigo engolir
e eu via
o rosto da minha avó empedrar
a boca seca
a sua a dos filhos
punição pelos peitos vazios
a vida da minha avó}
esvaindo
e na boca do poço rosto
de pedra
uma voz fraca
vinda do mais fundo
onde uma mulher pode ser
mas nunca em excesso
– nunca o excesso
pra quem foi mãe
aos treze anos em 1934 –
líquida:
vai roubar leite minha neta
seus filhos vão chorar um dia.
[Todo fim de tarde, após pendurar as roupas dos cabos da Vila Militar no varal, Adelina enchia d’água o tanque de cimento. Adelina de Araujo Antonio foi/é a minha avó e o seu tanque foi a minha primeira banheira.]
III
não conheci o meu avô
dizem que ele foi morto de porrada pelos vizinhos
quando ameaçou matar a minha avó e os sete filhos
não conheci o meu pai 1
o que engravidou a minha mãe duas vezes
e abandonou a minha mãe duas vezes
conheci o meu pai 2
o que me deu sobrenome e me amou tanto
que fez coisas que um pai não devia fazer
não conheci nenhum homem
que tenha me conhecido
que tenha conhecido
a minha mania de reproduzir com o dedo no ar
as linhas do teto
que tenha conhecido
a história dos meus nove ossos quebrados
ou de quando consegui voltar
antes de anoitecer
pra pensão de moças
depois de me perder no bambuzal
com uma amiga que eu queria
que fosse mais que amiga
não conheci nenhum homem
que tenha conhecido
os sons do meu sono pesado
porque não durmo pesado
perto de estranhos
teve uma época até
sempre alerta e com a mão
direita na faca
debaixo do travesseiro
depois que um homem
na ilusão de me conhecer
fez do meu corpo o seu território
em guerra.
[Abortei espontaneamente numa tarde de verão de 2016. Eu ainda sangrava quando V. se aproximou, puxou a alça do meu vestido e apertou o meu seio esquerdo. Depois, levantou a parte de baixo. Cheguei a ver quando ele começou a se masturbar. Em seguida, apaguei. Acordei sozinha, sangrando e com esperma na barriga. V. me ligou pedindo desculpas.]
……………………….
(En Oceânica)
ela pediu pra eu não enlouquecer
parei de tomar os remédios pra tentar ser gente
mas uma chuva forte caiu
era janeiro
e me escorreguei
perdi o senso
disseram
é temporário
os tremores noturnos
a matriz de uma ânsia descabida
os rostos na janela
todas as noites
os rostos que catequizam as janelas
nas casas sem muro
não há o que se ver que não sobrecarregue a carne
o corpo ainda sente
curva-se ao inevitável
tomba no meio da rua e conclui
não se dá as costas pra morte
há sempre um diagnóstico
preto no branco
vou morrer de tempo ou
vou fazer o quê?
re:___________________.
xxx
o homem abocanhava
a pele elástica de frango atirada
à calçada.
comia por todas as necessidades,
acocorado em sua miséria.
com os dedos empapados,
gargalhava e puxava o cabelo,
no transe de ser ignorado.
sem virar a cabeça
me pergunta a hora
de ir eu não sei a hora
de ir eu nunca sei
como me curo de mim
mas sabe Iolanda
velha louca bruxa
nasceu mirrada e virou deus
queriam fosse vermelha
era preta e quem diria
no sino do trovão escalava o tempo
e gritava de ir bem
ir bem ir bem ir bem
quando a areia deitava na palha
chão de terra batida tirava sandália
e dançava Iolanda
que os urubus sobrevoavam
a caspa pisa da mulher abru
pta quem diria Iolanda era deus.
xxx
rasgava a camisa com os dentes
a raiva desnudada de pavor
e se deixava à beira –
como adestrar a mão convulsa?
o mijo morno entre as cobertas era como peitos grandes pietá
aninhava-se no turbilhão do que era
reconhecia
seu corpo
erguendo à boca a própria armadilha
e lembrava das frutas que nasceram podres
as que nasceriam pra sempre.
ainda falava em reparação
o nariz bicando a asa de frango frita
boca e mãos luzindo engorduradas –
meu bem, seu amor é patético ao meio dia.
e a cara amarela desde a manhã
se havia
um grito vinha da cozinha
geladeira velha
bebo água e a voz grave do vizinho me treme
outro copo quebrado
varro mal
esqueço e
ah esse calor terrível
deito no chão –
você acha que vai chover?
xxx
choque
uns passos
segundo plano
acho que vi um milagre!
acho que vi!
as mãos estavam vazias
quando o homem louco
aos berros no meio da rua
esclareceu
o último gole
a raiva ainda alinhada –
é difícil, ele disse,
morrer.
já não alcançava seu sono
lembrava de quando podiam ser tristes juntos.
soubesse a hora de ir, calaria
e encolheria o corpo raquítico sob a coberta embolorada.
por outro extremo, lacunava-se em palavras rasas,
entregue, farta, extasiada –
que não pesasse ser pó, havendo mãos.
xxx
a cabeça de lado, o pelo na língua, os roxos na pele. aqueles homens apaixonados pelas coisas erradas, pelas pessoas erradas. estive muito tempo dentro dos dias, e não olhar pra trás era o mesmo que pedir não me deixa ir. mas há beleza no hálito doente, nas vicissitudes dos corpos, no rasgo imprevisto na carne, e não tão só, quando a espera é o grito.
xxx
puta que pari um bicho morto
risco indócil na coxa
barulho oco dos coágulos esbofeteando a água da privada
estilhaços imagens
o enquadramento impreciso
aparar as arestas até triturar os ossos do rosto
as unhas perfuram lentas a boca grande calada
é preciso fugir pelas beiradas
sem alarde
o ruído dos dedos esfregando a barba
os olhos inarticulados nos pesadelos diurnos
as luzes fragmentadas nas paredes exaustas de tantas
falas –
era quando fingíamos ser livres
e em silêncio cada um olhava pra si
desconjunturando a barbárie desses tempos
inaudíveis.
………………..
(En Mallamargens)
Na mesma revista con Ricardo Escudeiro.