Cando elaboro as selectas poéticas de mulleres poetas brasileiras, cada domingo, é moi frecuente que, de páxina web en páxina web existan bastantes ou moitos poemas a se repetir. Pois ben, no caso concreto de Ana Martins Marques iso acontece nunha proporción moitísimo menor. Iso quere dicir que, ou ben a poeta optou por difundir canta máis poesía mellor (no caso de ser consultada) ou ben que @s antólog@s teñen moitas dúbidas de cales son os seus mellores poemas e hai@s que optan por uns mentres otr@s se fixan noutros poemas (caso de non ser consultada)….do cal se deduce que a poesía de Ana Martins Marques ten tanta calidade que resulta complicadísimo escoller entre a súa producción poética.
Tamén é certo que Ana Martins Marques (Belo Horizonte, 1977) xa posúe un estimábel número de poemarios publicados, o cal contribúe a unha difusión extensa e variada. Mais non invalida o que antes dixemos.
Esta é a súa obra, polo que eu coñezo.
2009 – A vida submarina (Scriptum)
2011 – Da arte das armadilhas (Companhia das Letras)
2015 – O Livro das Semelhanças (Companhia das Letras)
2016 – Duas Janelas – com Marcos Siscar (Luna Parque Edições)
2017 – Como se fosse a casa (uma correspondência) – com Eduardo Jorge (Relicário)
2019 – Livro dos jardins (Quelonio)
Nunca o fago, mais hoxe quero singularizar un poema de Ana Martins Marques, porque me parece moi importante:
Agora deixa o livro
Volta os olhos
Para a janela
A cidade
A rua
O chão
O corpo mais próximo
Tuas próprias mãos:
Aí também
Se lê.
E paréceme importante porque nel se refire ao que eu denomino “terceiro grao do analfabetismo”. Sábese que primeiro grao é o de quen non sabe ler nin escribir. Despois vén o segundo grao, o de quen sabe ler e escribir mais non consegue establecer tema e intención do que leu; é moi frecuente hoxe. E aínda hai o que eu chamo terceiro grao: o de quen non sabe ler no seu entorno, nos sinais que vai deixando a vida, como no poema se reflicte de forma tan bela.
Á marxe de todo iso tamén quero salientar a amplitude da visión poética desta autora, que é tan capaz de reparar nos obxectos da casa no día a día e de aí extraer poesía, e poesía de grande calidade, como levarnos por xardíns de xeografías ben apartadas da brasileira tocando temas que resultan do noso máximo interese porque tratan asuntos que están moi dentro de nós.
É como se a poesía de Ana Martins Marques nos envolverá con palabras a pel toda, e entón dicimos “quen ben, é bonita esta poesía”, momento no cal percibimos que a poesía non ficou na pel senón que se adentrou moi dentro de nós, no interior máis interior do noso interior.
De aí que Marcos Siscar fale de humanismo acolledor.
Tamén merece destaque a pericia formal coa que se expresa. Non é moi habitual referirse a ela, mais a min paréceme necesario e xusto. Non todo vale na poesía. Non chega con escribir liñas que non rematan na marxe. É necesaria unha capacidade observación ou sensibilidade que indique onde está a poesía, o que queremos transmitir. Mais tamén é necesaria a pericia técnica que nos permita facelo con efectividade, beleza e conmoción.
Lin nunha entrevista que se considera unha persoa distraída. Isto é o mesmo que dicir que a capacidade de abstracción para ela é algo natural. E non esquezamos que a abstracción é precisamente aquilo que nos permite “ver” cousas que doutra maneira, nun estado normal de consciencia e concentración no mundo real e tamén no abstracto, non reararíamos nelas nunca. E ademais é quen de transmitir con suma elegancia estética, acompañada da elegancia ética.
Ana Martins Marques, elegancia na ética e tamén na estética.
Este é o seu Facebook
E agora, a súa poesía.
(Na Ruído Manifesto)
Minas
Se eu encostasse
meu ouvido
no seu peito
ouviria o tumulto
do mar
o alarido estridente
dos banhistas
cegos de sol
o baque
das ondas
quando despencam
na praia
Vem
escuta
no meu peito
o silêncio
elementar
dos metais
*
Poema de verão
Você está sob a luz
de certos poemas cheios de sol
sua mão faz sombra sobre a página
encobrindo algumas palavras
a palavra menina agora está à sombra
a palavra retângulo
a palavra brinquedo
as outras palavras ficam pairando
no poema como partículas de poeira
brilhando na luz
você gostaria de escrever poemas assim
em que se encontrasse de repente
o esqueleto alvo de um animal pequeno
ou em que um jovem casal dormisse
dentro de uma picape vermelha
ou ao menos em que houvesse uma raposa
vinho de maçã, cadeiras desdobráveis
e onde as cervejas fossem postas para esfriar
dentro de um rio
você gostaria de escrever um poema
em que acontecessem tantas coisas
e as palavras vibrassem um pouco
num acordo tácito
com as coisas vivas
em vez disso você escreve este
*
O que nos aconteceu
o que não nos aconteceu
têm o mesmo peso no poema
Ontem visitamos
nosso amigo doente
era comovente ver seu esforço
para parecer melhor do que estava
Andamos um pouco pela praia
a certa altura me dei conta
de que nunca perguntei onde ele nasceu
Encontramos uma água-viva na areia
alguém disse que ser assim
indistinguível como a areia da areia
o mar do mar
deve ser algo próximo da felicidade
Uma dessas coisas não aconteceu
*
Jardim francês
Esculpir-me
como a uma
cerca viva
erigir-me
severa e simétrica
construir-me em volta
de um palácio (vazio)
ou apenas costurar-me
em torno
do touro
*
Jardim inglês
Aprendi que tudo o que vive
tudo o que cresce
vive e cresce
contra o cálculo
desde então
alamedas amplas me dividem
não exatamente
ao meio
*
Jardim japonês
Arqueio-me como uma ponte de madeira
sobre um lago aceso por carpas vermelhas
sou dura e seca e quase sem enfeites
como um jardim de areia
(mas há pedras que florem
como flores)
silenciosa como um papel de arroz
em que ainda
nada
foi escrito
*
Língua
1
no princípio
toda língua é estrangeira
acerca-se do seu corpo como de uma cidade
até tomá-lo
fazê-lo chamar-se a si mesmo pelos nomes
que lhe dá
pé perna barriga dentes
fazer a língua chamar-se língua
chamar-se a si mesma pelo nome dela
língua
acerca-se até domá-la
para ensinar-lhe uma coreografia sua
que ela, língua, por sua vez
ensina ao pensamento
cantando
estar na língua como numa
casa louca
que obriga ao abrigar
ela pensa o seu sexo
ela pensa o seu coração
abrindo-o
ela é música
e combate
ela fala na sua boca
com a boca dos mortos
ela é a eletricidade
dos cadáveres
daqueles cuja boca ela encheu
antes da terra
ela cria raízes no seu corpo
dela não é possível se livrar
você é livro
dela
e se aprende outra
é contra ela
contra sua memória
excessiva
e em viagem
com ela
que te cobra e cobre
como um mar
2
Ou é um dueto
uma dança
muito antiga
dela você também se acerca
toma as palavras emprestadas
e empresta-lhes também
sua energia
sua coragem ou doçura
e talvez seja mesmo possível
descartá-la
dissolver-se num mar que não o seu (Cf. Jorge de Sena, “Noções de linguística”)
livrar-se dela
trocá-la por outra
mais nova ou versátil
(meus únicos heróis
são os tradutores)
ou pouco importa a língua
mas o dizer as coisas
que ao serem ditas
extinguem-se
mas com que fulgor
(escrever poemas:
não se contentar com as línguas que se sabe
nem mesmo com as línguas que há)
as línguas são meios
de viagem, são meios
de transporte as palavras:
carrega consigo o camelo o arranha-céu
a baleia
não só a baleia
todas as baleias
não só o amor
todo o amor
……………………………….
(Na USP.BR)
Poemas selecionados dos livros A vida submarina, Da arte
das armadilhas, O livro das semelhanças e Duas janelas
Poemas do livro A vida submarina (Scriptum, 2009)
Da série “Arquitetura de interiores”
sala
na sala decorada
pela noite
e pelo imenso desejo,
nossas xícaras
lascadas
cozinha
nostálgicas de um tempo de intermináveis almoços
banha de porco alho pão açúcar sujeira
dias que vertiam leite vinhos fortes azeite mel
rituais sangrentos de morte carne sangue e fogo
alvoroço de primos cozinheiras e restos aos cachorros
as panelas de seu desuso observam
a mulher sozinha o jornal do dia o café solúvel
e duas xícaras irônicas no aparador
porta
a porta
como toda fronteira
é apenas para se atravessar
rapidamente ela já não serve mais
um corpo-a-corpo
e já se está do outro lado
dela nasce o fora e o dentro
ela que é seu vazio
jardim
a mesa de lata
a cobra verde da mangueira
os canteiros bobos de manjericão
e mato
as rosas enrugadas como tias
atraindo formigas como xícaras mal lavadas
os brinquedos esquecidos
estragando-se de espaço
servidos todos de seu alimento
de sol e nuvem
guarda-roupa
seu vestido de verão
sem você dentro
não é um vestido de verão
porque no vestido o verão
era você
mesa
mais importante que ter uma memória é ter uma mesa
mais importante que já ter amado um dia é ter uma mesa sólida
uma mesa que é como uma cama diurna
com seu coração de árvore, de floresta
é importante em matéria de amor não meter os pés pelas mãos
mas mais importante é ter uma mesa
porque uma mesa é uma espécie de chão que apoia
os que ainda não caíram de vez
DARDO
Existe o corpo,
o eixo dos joelhos, as dobras,
a força teatral dos membros, o gosto acre,
o extremo silêncio,
as mão pendentes.
Existe o mundo,
as savanas e o iceberg,
as horas velozes, o falcão,
o crescimento secreto
das plantas, o repouso dos objetos
que envelhecem no uso, sem dor.
Existe o poema,
um dardo atirado a coisas mínimas,
à noite, às cicatrizes.
Um secreto amor os une,
as mãos na água, a memória do verão,
o poema ao sol.
Poema do livro Da arte das armadilhas (Companhia das Letras, 2011)
RELÓGIO
De que nos serviria
um relógio?
se lavamos as roupas brancas:
é dia
as roupas escuras:
é noite
se partes com a faca uma laranja
em duas:
dia
se abres com os dedos um figo
maduro:
noite
se derramamos água:
dia
se entornamos vinho:
noite
quando ouvimos o alarme da torradeira
ou a chaleira como um pequeno animal
que tentasse cantar:
dia
quando abrimos certos livros lentos
e os mantemos acesos
à custa de álcool, cigarros, silêncio:
noite
se adoçamos o chá:
dia
se não o adoçamos:
noite
se varremos a casa ou a enceramos:
dia
se nela passamos panos úmidos:
noite
se temos enxaquecas, eczemas, alergias:
dia
se temos febre, cólicas, inflamações:
noite
aspirinas, raio-x, exame de urina:
dia
ataduras, compressas, unguentos:
noite
se esquento em banho-maria o mel que cristalizou
ou uso limões para limpar os vidros:
dia
se depois de comer maçãs
guardo por capricho o papel roxo escuro:
noite
se bato claras em neve:
dia
se cozinho beterrabas grandes:
noite
se escrevemos a lápis em papel pautado:
dia
se dobramos as folhas ou as amassamos:
noite
(extensões e cimos:
dia
camadas e dobras:
noite)
se esqueces no forno um bolo
amarelo:
dia
se deixas a água fervendo
sozinha:
noite
se pela janela o mar está quieto
lerdo e engordurado
como uma poça de óleo:
dia
se está raivoso
espumando
como um cachorro hidrófobo:
noite
se um pinguim chega a Ipanema
e deitando-se na areia quente sente ferver
seu coração gelado:
dia
se uma baleia encalha na maré baixa
e morre pesada, escura,
como numa ópera, cantando:
noite
se desabotoas lentamente
tua camisa branca:
dia
se nos despimos com ânsia
criando em torno de nós um ardente círculo de panos:
noite
se um besouro verde brilhante bate repetidamente
contra o vidro:
dia
se uma abelha ronda a sala
desorientada pelo sexo:
noite
de que nos serviria
um relógio?
Poemas de O livro das semelhanças (Companhia das Letras, 2015)
TRADUÇÃO
Este poema
em outra língua
seria outro poema
um relógio atrasado
que marca a hora certa
de algum outro lugar
uma criança que inventa
uma língua só para falar
com outra criança
uma casa de montanha
reconstruída sobre a praia
corroída pouco a pouco pela presença do mar
o importante é que
num determinado ponto
os poemas fiquem emparelhados
como em certos problemas de física
de velhos livros escolares
5 poemas da série “Cartografias”
E então você chegou
como quem deixa cair
sobre um mapa
esquecido aberto sobre a mesa
um pouco de café uma gota de mel
cinzas de cigarro
preenchendo
por descuido
um qualquer lugar até então
deserto
*
Você fez questão
de dobrar o mapa
de modo que nossas cidades
distantes uma da outra
exatos 1.720 km
fizessem subitamente
fronteira
*
Combinamos por fim de nos encontrar
na esquina das nossas ruas
que não se cruzam
*
Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem
mas posso esquecer uma laranja sobre o México
desenhar um veleiro sobre a Índia
pintar as ilhas de Cabo Verde uma a uma
como se fossem unhas
duplicar a África com um espelho
criar sobre o Atlântico um círculo de água
pousando sobre ele meu copo de cerveja
circunscrever a Islândia com meu anel de noivado
ou ocultar o Sri Lanka depositando sobre ele
uma moeda média
visitar os nomes das cidades
levar o mundo a passeio
por ruas conhecidas
abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse
apenas para que tome
algum sol
*
Quando enfim
fechássemos o mapa
o mundo se dobraria sobre si mesmo
e o meio-dia
recostado sobre a meia-noite
iluminaria os lugares
mais secretos
É bom lembrar lembranças dos outros
como quem se oferece para carregar as compras de supermercado
de outra pessoa
é bom usar palavras que nunca usamos, palavras
que só conhecemos dos livros de botânica dos anúncios
de cruzeiros dos contratos de locação
é bom portanto usar palavras emprestadas
nem que seja para lembrar
que só temos palavras de segunda mão
é bom ficar de vez em quando para dormir
na casa de um amigo
usar uma velha camiseta dele habitar
alguns de seus hábitos
usar à noite se possível
um de seus sonhos recorrentes
é bom encontrar uma vez ou outra pessoas
que conhecemos na infância
é bom nos esforçarmos por um tempo
para parecer com a lembrança delas
é bom topar de repente com um tanto de areia
no bolso de uma calça jeans que há tempos não usamos
seguir as instruções do horóscopo de um signo
que rege um dia em que não nascemos
vestir-nos de acordo com a previsão do tempo
de uma cidade que nunca pensamos visitar
é bom ao menos uma vez na vida fazer uma viagem
em companhia de um parente morto
é bom escrever de vez em quando poemas
com viagens por dentro
com cidades e memórias de paisagens por dentro
que pareçam escritos
por outra pessoa
O passado anda atrás de nós
como os detetives os cobradores os ladrões
o futuro anda na frente
como as crianças os guias de montanha
os maratonistas melhores
do que nós
salvo engano o futuro não se imprime
como o passado nas pedras nos móveis no rosto
das pessoas que conhecemos
o passado ao contrário dos gatos
não se limpa a si mesmo
aos cães domesticados se ensina
a andar sempre atrás do dono
mas os cães o passado só aparentemente nos pertencem
pense em como do lodo primeiro surgiu esta poltrona este livro
este besouro este vulcão este despenhadeiro
à frente de nós à frente deles
corre o cão
O LIVRO DAS SEMELHANÇAS
O modo como o seu nome dito muito baixo pode ser confundido com a palavra xícara
e como ele esquenta de dentro para fora
o modo como a palma das suas mãos se parece com porcelana trincada
o modo como ao levantar-se você lembra um grande felino
mas ao caminhar já não se parece com um animal mas com uma máquina rápida
e de costas sempre me lembra um navio partindo
embora de frente nunca pareça um navio chegando
o modo como dita por você a palavra “sim” parece uma palavra
que fizesse o mesmo sentido em todas as línguas
o modo como dita por você a palavra “não” parece uma palavra
que você acabou de inventar
o parentesco entre as fotografias rasgadas os brinquedos esquecidos na chuva cartas
que deixamos de enviar produtos em liquidação frases escritas entre parênteses
papel de presente as toalhas que acabamos de usar e massa de pão
e, mais importante, o parentesco de tudo isso
com o modo como você chama o táxi por telefone
a camisa branca que você acabou de despir sempre me lembra um livro aberto ao sol
seus sapatos deixados na sala sempre me parecem ensaiar os primeiros passos de dança
numa versão musical para o cinema do seu livro preferido
o modo como no seu apartamento as coisas sempre parecem estar em casa
e você sempre parece estar de visita
e como você pede licença à penteadeira para chorar
o modo como as nossas conversas me lembram bilhetes interceptados cardápios de
restaurantes exóticos rótulos de bebidas fortes documentos comidos nas bordas
por filhotes de cão
o modo como os seus cabelos parecem as linhas de um livro lido por uma criança
que ainda não sabe ler
ou apenas desenhos que alguém por equívoco tomasse por escrita
o modo como os seus sonhos parecem os pensamentos de pessoas que sobreviveram
a um desastre de avião
parecem as lembranças de um ex-boxeador apaixonado
parecem os projetos de futuro de crianças muito pequenas
parecem os contos de fadas preferidos de ditadores sanguinários
os parentescos entre as guerras íntimas os jogos de armar as primeiras viagens sem
os pais os países coloridos de vermelho no mapa-múndi pessoas que sempre esquecem
as chaves as primeiras palavras ditas pela manhã e a disposição para usar a violência
o modo como apesar de tudo isso você não se parece com ninguém
a não ser talvez com certas coisas
similares a nada
Poemas do livro Duas janelas (com Marcos Siscar. Luna Parque, 2016)
Uma alegria haver línguas
que não entendo
delas foram varridas
as lembranças todas
nelas o sentido passa entre as palavras
como a luz entre as plantas
nelas é sempre a infância
balbucio, manhã, cachorros
nelas as núpcias de tudo
com tudo
se celebram
nelas tudo é ruído
doce, antigos barulhos
nelas não há
como na nossa
mortos por baixo
(ou antes há muitos
só não
os nossos)
nelas as palavras de amor
ainda crepitam
como madeiras novas
ando nas ruas entre as pessoas
que cantam (parece-me que cantam)
nessa língua que não entendo
parece-me que expressam claramente
a vida e a morte própria
e dos outros
ou que apenas gorjeiam
sibilam, silvam
ando nas ruas e é como uma conferência
de pássaros, pianos roucos
ando nas ruas e é como se lesse
às pressas
cartas em chamas
ando nas ruas pensando como é possível
tantas pessoas falando nada
em voz alta
quando me dirigem por equívoco
a palavra sorrio como se pedisse desculpas
depois fico tentada a correr atrás daquela pessoa
e devolver-lhe a palavra que ela deixou
cair por descuido
…………………………..
(En Tudo é poema)
A memória lê o dia
de trás para frente
acendo um poema em outro poema
como quem acende um cigarro no outro
que vestígio deixamos
do que não fizemos?
como os buracos funcionam?
somos cada vez mais jovens
nas fotografias
de trás para frente
a memória lê o dia
……………………………………..
(En Templo cultural Delfos)
Açucareiro
De amargo
basta
o amor
Agridoce,
ela disse
Mas a mim
pareceu
amargo
– Ana Martins Marques, em “Da arte das armadilhas”. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
§
Ainda é tarde…
Ainda é tarde
para saber
Ainda há facas
cruas demais para o corte
Ainda há música
no intervalo entre as canções
Escuta:
é música ainda
Ainda há cinzas
por dizer
– Ana Martins Marques, em “O livro das dessemelhanças”. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
§
Barcos de papel
Os poemas em geral são feitos de palavras
no papel
seria melhor se fossem de pano
porque poderiam tomar chuva
ou de madeira
porque sustentariam uma casa
mas em geral são feitos de palavras
no papel
e por isso servem para poucas coisas
entre as quais não se encontra
tomar chuva
ou sustentar uma casa.
Dobrados sobre si mesmos,
lançam-se no mundo
com a coragem suicida
dos barcos de papel.
– Ana Martins Marques, em “A vida submarina”. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.
§
Cadeira
I
Repetes
diariamente
os gestos
do primeiro homem
que se sentou
numa tarde quente
olhando as savanas
II
Pouso
de gigantescos pássaros
cansados
– Ana Martins Marques, em “Da arte das armadilhas”. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
§
Em branco
Dizem que Cézanne
quando certa vez pintou um quadro
deixando inacabada parte de uma maçã
pintou apenas a parte da maçã
que compreendia.
É por isso
meu amor
que eu dedico a você
este poema
em branco.
– Ana Martins Marques, em “A vida submarina”. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.
§
Esconderijo
Estas são palavras que eu não
deveria dizer
palavras que ninguém
deveria ouvir
que elas permanecessem no silêncio
de onde vêm
no fundo escuro da língua
cheio de doçura e ruídos
com o ranço informulado
dos segredos
por via das dúvidas escondi-as aqui
neste poema
onde ninguém as vai encontrar
– Ana Martins Marques, em “O livro das dessemelhanças”. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
§
Fruteira
Quem se lembrou de pôr sobre a mesa
essas doces evidências
da morte?
– Ana Martins Marques, em “Da arte das armadilhas”. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
§
Leque
Contra o fundo da noite
desenha-se
a sua nudez
como um lápis
pele de
penumbra
poças de
rosas quentes
luz diagonal
nos lençóis
de há pouco
e por fim
você se abre
como um leque.
– Ana Martins Marques, em “A vida submarina”. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.
§
Nome do autor
Impresso
como parece estranho
o mesmo nome
com que te chamam
– Ana Martins Marques, em “O livro das dessemelhanças”. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
§
O que eu sei?
Sei poucas coisas sei que ler
é uma coreografia
que concentrar-se é distrair-se
sei que primeiro se ama um nome sei
que o que se ama no amor é o nome do amor
sei poucas coisas esqueço rápido as coisas
que sei sei que esquecer é musical
sei que o que aprendi do mar não foi o mar
que só a morte ensina o que ela ensina
sei que é um mundo de medo de vizinhança
de sono de animais de medo
sei que as forças do convívio sobrevivem no tempo
apagando-se porém
sei que a desistência resiste
que esperar é violento
sei que a intimidade é o nome que se dá
a uma infinita distância
sei poucas coisas
– Ana Martins Marques, em “O livro das dessemelhanças”. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
§
Papel de arroz
Mira:
as coisas construídas oscilam
numa frágil arquitetura
(os papéis cultivados
em campos
guardarão sempre a memória seca
dos dias alagados).
Também as palavras revelam somente o que escondem:
eis a solução de uma questão
delicada.
– Ana Martins Marques, em “A vida submarina”. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.
§
Papel de seda
Houve um tempo em que se usava
nos livros
papel de seda para separar
as palavras e as imagens
receavam talvez que as palavras
pudessem ser tomadas pelos desenhos
que eram
receavam talvez que os desenhos
pudessem ser entendidos como as palavras
que eram
receavam a comunhão universal
dos traços
receavam que as palavras e as imagens
não fossem vistas como rivais
que são
mas como iguais
que são
receavam o atrito entre texto
e ilustração
receavam que lêssemos tudo
os sulcos no papel e as pregas de saias
das mocinhas retratadas
as linhas da paisagem e o contorno das casas
eu receava rasgar o papel de seda
erótico como roupa íntima
– Ana Martins Marques, em “O livro das dessemelhanças”. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
§
Relâmpagos
Certas máquinas são feitas para o esquecimento.
Há dias em que sinto trabalharem em mim
as confusões do relâmpago.
Então coleciono letras, órbitas, radares.
A linha que me liga aos quadris dessa noite imensa
é a mesma que sai da garganta aberta do dia.
Vejo as estrelas desenharem-se em constelações,
sei muitas coisas rápidas, precisas,
por alguns instantes.
– Ana Martins Marques, em “A vida submarina”. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.
§
Reparos
Algumas coisas
quando se quebram
são fáceis de consertar:
uma xícara lascada
uma estatueta de gesso
um sapato velho
uma receita que desanda
ou uma amizade arruinada.
Ainda que guardem
as marcas do remendo,
é possível que essas marcas
tenham um certo charme
como algumas cicatrizes.
Mas experimente consertar
um poema que estragou.
– Ana Martins Marques, em “A vida submarina”. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.
§
Talheres
Colher
Se o sol nela
batesse
em cheio
por exemplo
numa mesa posta
no jardim
imediatamente se formaria
um pequeno lago
de luz
Garfo
Em três ramos
floresce
o metal
Faca
Sua fria elegância
não escamoteia
o fato:
é ela que melhor se presta
ao assassinato
– Ana Martins Marques, em “Da arte das armadilhas”. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
§
Título
Suspenso
sobre o livro
como um lustre
num teatro
– Ana Martins Marques, em “O livro das dessemelhanças”. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
§
………………………………………….
(En António Miranda. com)
1.
em pelos de bigode
negros brancos.
imita, em suíte.
o avesso do atlântico.
ele frequenta os extremos do dia.
desperta a língua materna
na ponta dos nervos:
esta viva.
ela se move com enganos.
e à noite, com olhos de museu,
observa observadores
e ama imagens com
cegueira sintática, com as mãos,
as unhas em flores,
habitando uma verdade de vidro
soluçou dentro do vestido,
em técnica água com açúcar,
o canto das vigas em cálculo e cálcio
é o ritmo do outro lado do mar,
a língua-lâmina vai e volta
sob os pelos do bigode:
uma noite a noite aparece
o vidro contra vapor, a hora do hálito,
houvesse ali ela morado e alô
com barulho de talheres
seria a leitora de bigode branco
postiço par irregular contradiz
o impar, se ela personne personae.
busca a porta em terceira pessoa.
uma ana neutra, protegida
em dicionário germânico,
traz uma fortaleza cifrada.
quem lê poemas expõe
o dorso à intimidade da casa.
por isso.
2.
moro na cidade explicada
em várias línguas,
muitas delas não-latinas:
não entendo a cidade
na qual vivo, todavia.
enquanto me banho
ou quando os vizinhos
têm sexo, as explicações
da cidade, palavra por palavra,
entram por um ouvido,
saem por outro.
o letreiro Roma 24 horas
anuncia falanges á dúzia:
Rômulo, Remo, por exemplo,
gritam: “leite de loba” ou
“hora da sopa”, desço
banhado, a colher de prata
no bolso do roupão bordado
Immer der Sonne entgen.
o bigode branco-preto reaparece,
a corcova está maior e o esforço
para ouvir o que ela lê em imagem
permanece: se poema, borra de café ou
as explicações da cidade onde moro.
…..
Espelho
Dentro do armário
do seu quarto de dormir
deve haver um espelho.
Se você sai
e deixa o armário aberto
durante todo o dia
o espelho reflete
um pedaço da sua cama
desfeita.
Se você sai
e deixa a porta fechada
durante todo o dia
o espelho reflete o escuro
do seu armário de roupas,
a luz contida dos vidros
de perfume.
Do outro lado do poema
não há nada.
Vaso
Moldar em torno do nada
uma forma
aberta e fechada.
Palavra por palavra
o poema circunscreve seu vazio.
Leque
Contra o fundo da noite
desenha-se
a sua nudez
como um lápis
pele de
penumbra
poças de
rosas quentes
luz diagonal
nos lençóis
de há pouco
e por fim
você se abre
como um leque.
Memória (I)
As unhas não guardam
marcas dos amores que,
delicadas, destroçaram.
Os olhos não retêm
a memória das imagens
indecifradas.
Com a lembrança pousada
na praia antiga de um beijo,
procuro
desatenta
traçar o mapa do desejo,
sua secreta geografia.
……………..
.
Noite adentro
Atado a um barco na noite
o sono curva-se sobre si mesmo,
entregue ao movimento secreto das ondas.
Durmo, acordo, vem dos livros fechados
o cheiro escuro dos sargaços.
Neste quarto, noite adentro, percebe-se
a presença perturbadora do mar:
nas estantes, nos tapetes, nos móveis submersos.
Nas paredes lisas de cansaço.
Sou jogada no sono de um sonho a outro,
lançada entre corais, como um peixe
que dorme na ressaca.
Quando for preciso novamente
acordar para o dia,
o mar terá se afastado lentamente
e voltado a ocupar o lugar
onde o vejo
pela janela esquerda do quarto.
PENÉLOPE
I
O que o dia tece,
a noite esquece.
O que o dia traça;
a noite esgarça.
De dia, tramas,
de noite, traças.
De dia, sedas,
de noite, perdas.
De dia, malhas,
de noite, falhas.
II
A trama do dia
na urdidura da noite
ou a trama da noite
na urdidura do dia
enquanto teço:
a fidelidade por um fio.
III
De dia dedais.
Na noite ninguém.
IV
E ela não disse
já não te pertenço
há muito entreguei meu coração ao sossego
enquanto seu coração balançava em viagem
enquanto eu me consumia
entre os panos da noite
você percorria distâncias insuspeitadas
corpos encantados de mulheres com cujas línguas
estranhas eu poderia tecer uma mortalha
da nossa língua comum.
E ela não disse
no início ainda pensei em você
primeiro como quem arde diante de uma fogueira
apenas extinta
depois como quem visita em lembrança a praia da infância
e então como quem recorda o amplo verão
e depois como quem esquece;
E ela também não disse
a solidão pode ter muitas formas,
tantas quantas são as terras estrangeiras,
e ela é sempre hospitaleira.
V
A viagem pela espera
é sem retorno.
Quantas vezes a noite teceu
a mortalha do dia.
quantas vezes o dia
desteceu sua mortalha?
Quantas vezes ensaiei o retorno —
o rito dos risos,
espelho tenro, cabelos trançados,
casa salgada, coração veloz?
A espera é a flor que eu consigo.
Água do mar, vinho tinto — o mesmo copo.
VI
E então se sentam
lado a lado
para que ela lhe narre
a odisseia da espera.
CAÇADA
E o que é o amor
senão a pressa
da presa
em prender-se?
A pressa
da presa
em
perder-se
COLEÇÃO
Colecionamos objetos
mas não o espaço
entre os objetos
fotos
mas não o tempo
entre as fotos
selos
mas não
viagens
lepidópteros
mas não
seu voo
garrafas
mas não
a memória da sede
discos
mas nunca
o pequeno intervalo de silêncio
entre duas canções
………………………..
(En Poesía Primata)
.
REGADOR
Num canto do jardim
onde alguém o esqueceu
pronto, ereto, o regador
aponta para o sol
embaraçadas por dentro
flores rápidas ou lentas
florem
findam
MITOLÓGICAS
Mortos em águas calmas
conservam os cabelos lisos
mortos em águas revoltas
os trazem encaracolados.
Eu, que morri de amor,
tenho os cabelos negros
pois morri em águas turvas
tenho os cabelos longos
pois morri em águas fundas
– sigo descabelada.
À BEIRA-MAR
Se eu vivesse
à beira-mar
teria
outra cor
outros cabelos
outras maneiras
de ferir-me
ou alegrar-me
me apartamento
meus sapatos
meus livros
minha boca
meus olhos
estariam cheios de areia
de céu de falésias
de gaivotas de água
eu me apaixonaria
por homens diferentes
e decerto aprenderia
a dançar
teria um senso de direção
mais apurado
gastaria meu dinheiro
com outras coisas
e as palavras
que eu usaria
seriam outras
talvez tivesse um altar
para anjos anfíbios
e obscuros deuses
do mar
talvez desse
festas
vestisse apenas
branco
gritasse com
os pássaros
talvez frequentasse
à tarde
a biblioteca municipal
teria outro ritmo
outro cheiro
outra velocidade
e pensaria no mar
de outro jeito
– eu perderia o mar
se o tivesse sempre por perto
como perco minhas canetas
meus guarda-chuvas meus isqueiros
essas coisas baratas
fáceis de encontrar?
I LIKE MY BODY
o meu corpo tão mais bonito
junto ao seu
músculos, pelos
meus seus cabelos
encostados nossos
joelhos juntos
densos, compactos
acidentes de ossos
nos seus braços
os meus braços
tão melhores
mãos encontradas
ao acaso das vértebras
um caminho
áspero, liso
pela pela
(sua língua
lenta
entre
entra)
o meu corpo tão mais bonito
junto ao seu
côncavas, iguais
nossas bocas
se recebem
DA ARTE DAS ARMADILHAS
O seu corpo para o meu:
seta,
precisamente
Inaudível
o mundo mudo
aciona o fecho
da flor
Há desilusão
mas não há
fuga
O caçador está
preso à presa
…………….
SEGUNDO POEMA
para Paulo Henriques Britto
Agora supostamente é mais fácil
o pior já passou; já começamos
basta manter a máquina girando
pregar os olhos do leitor na página
como botões numa camisa ou um peixe
preso ao anzol, arrastando consigo
a embarcação que é este livro
torcendo pra que ele não o deixe
pra isso só contamos com palavras
estas mesmas que usamos todo dia
como uma mesa um prego uma bacia
escada que depois deitamos fora
aqui elas são tudo o que nos resta
e só com elas contamos agora
POEMAS REUNIDOS
Sempre gostei dos livros
chamados poemas reunidos
pela ideia de festa ou de quermesse
como se os poemas se encontrassem
como parentes distantes
um pouco entediados
em volta de uma mesa
como ex-colegas de colégio
como amigas antigas para jogar cartas
como combatentes
numa arena
galos de briga
cavalos de corrida ou
boxeadores num ringue
como ministros de estado
numa cúpula
ou escolares em excursão
como amantes secretos
num quarto de hotel
às seis da tarde
enquanto sem alegria apagam-se as flores do papel de parede
●
Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem
mas posso esquecer uma laranja sobre o México
desenhar um veleiro sobre a Índia
pintar as ilhas de Cabo Verde uma a uma
como se fossem unhas
duplicar a África como um espelho
criar sobre o Atlântico um círculo de água
pousando sobre ele meu copo de cerveja
circunscrever a Islândia com meu anel de noivado
ou ocultas o Sri Lanka depositando sobre ele
uma moeda média
visitar os nomes das cidades
levar o mundo a passeio
por ruas conhecidas
abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse
apenas para que tome
algum sol
●
Abro o mapa na chuva
para ver
pouco a pouco
diluírem-se as fronteiras
as cidades borradas
diminuem de distância
as cores confundidas
nem parecem mais aleatórias
perderam aquele modo abrupto
com que as cores mudam nos mapas
agora há um grande lago
onde antes havia uma cordilheira
o mar não é mais molhado
do que o deserto logo ao lado
Deixo depois o mapa
para secar ao sol
sobre a grama do jardim
mais rápidas do que aviões
as formigas atravessam
de um continente a outro
uma lagarta riscada
apossou-se das Coreias
agora unificadas
um tapate de folhas
cobre o mar Egeu
e o rastro de uma lesma umedeceu
o Atacama
uma formiga enamorou-se
de um vulcão
exatamente do seu tamanho
um dos polos
ficou à sombra
e resfriou-se mais que o outro
de longe não sei se são moscas
ou os nomes das cidades
Penso que se deixasse o mapa aí
tempo o bastante
em algum momento surgiria
quem sabe
um pequeno inseto novo
com esse dom que têm os bichos
e as pedras e as flores e as folhas
de imitarem-se
uns aos outros
um pequeno inseto novo
eu dizia
um novo besouro talvez
que trouxesse desenhado nas costas
o arquipélago de Cabo Verde
ou as linhas finas das fronteiras
entre a Argélia e a Tunísia
6
Perder a cabeça
e então buscá-la
nos últimos lugares
onde esteve
dentro da touca
de banho
sobre o travesseiro
entre os joelhos
entre as mãos
na casa demolida
da infância
sobre suas coxas
mornas
ainda
9
Esperar horas a fio
e então desvencilhar-se
das coisas tecidas na espera
dos ponteiros do relógio
cada um mais lento que o outro
dos pelo menos dez cigarros
das poltronas de mogno
uma delas
vazia
●
Estou no dia de hoje como num cavalo
você está nas suas roupas como num navio
estamos na cidade como num teatro numa floresta na água
a tarde de terça é uma feira de bairro
nos encontramos quase por descuido
à mesa do café com sua toalha xadrez
de frente para o cinema contínuo do mar
no vagão deste mês setembro sereia sinuosa
era quente o dia era o equívoco das estações
era a música pequena da memória
estou no dia de hoje como num casaco largo demais
estou no país desta tarde estudei
na escola do enfado
você dobra a tarde como as mangas
da sua camisa branca
você desdobra a tarde como um guardanapo
lançado ao colo
você conhece os modos no que se refere às tarde
você sabe usar
os talheres da tarde
estou desconfortável no meu nome estou
na antessala do amor estou na estação
da espera queria distrair a morte
você conhece muitas coisas você sabe falar
sobre as coisas como esses bichos que conhecem
desde sempre as rotas ancestrais
como os pássaros que trazem impressos no corpo
os mapas migratórios você conhece a língua do amor
que eu soletro tão mal
(En O Ninho ea Tempestade)
ÍCARO
Somos os dois
Incompatíveis
como a cera
e o sol
e no entanto
parecemo-nos
como se parecem
o açúcar e o sal
devemos
porém
deixar
de insistir
pois se até
Ícaro
caiu
em si.
MÃOS
Uma trabalha mais que a outra.
Dividem o peso dos anéis.
Uma nunca aprendeu a escrever.
Com isso a outra tornou-se mais silenciosa,
mais firme, mais acostumada ao adeus.
Em alguns gestos entram as duas
numa mesma coreografia
como quando é necessário contar algo
mais que cinco.
Aceitam as manchas dos anos
como solteironas
que envelhecem juntas.
(En Desafiando o silencio)
Tenho quebrado copos
é o que tenho feito
raramente me machuco embora uma vez sim
uma vez quebrei um copo com as mãos
era frágil demais foi o que pensei
era feito para quebrar-se foi o que pensei
e não: eu fui feita para quebrar
em geral eles apenas se espatifam
na pia entre a louça branca e os talheres
(esses não quebram nunca) ou no chão
espalhando-se então com um baque luminoso
tenho recolhido cacos
tenho observado brevemente seu formato
pensando que acontecer é irreversível
pensando em como é fácil destroçar
tenho embrulhado os cacos com jornal
para que ninguém se machuque
como minha mãe me ensinou
como se fosse mesmo possível
evitar os cortes
(mas que não seja eu a ferir)
tenho andado a tentar
não me ferir e não ferir os outros
enquanto esgoto o estoque de copos
mas não tenho quebrado minhas próprias mãos
golpeando os azulejos
não tenho passado a noite
deitada no chão de mármore
estudando as trocas de calor
não tenho mastigado o vidro
procurando separar na boca
o sabor do sangue o sabor do sabão
nem tenho feito uma oração
pelo destino variado
do que antes era um
e por minha força morre múltiplo
tenho quebrado copos
para isso parece deram-me mãos
tenho depois encontrado
cacos que não recolhi
e que identifico por um brilho súbito
no chão da cozinha de manhã
tenho andado com cuidado
com os olhos no chão
à procura de algo que brilhe
e tenho quebrado copos
é o que tenho feito
…………………
(En Brainly)
Esperar junto àqueles
que caíram em si
que caíram na risada
que caíram no ridículo
que caíram do cavalo
que caíram das nuvens
que a noite
caia
…………………
(En Tudo é Poema)
Pode ser que como as estrelas
as coisas estejam separadas
por pequenos intervalos de tempo
pode ser que as nossas mãos
de um dia para o outro
deixem de caber
umas dentro das outras
pode ser que no caminho para o cinema
eu perca uma de minhas ideias
preferidas
e pode ser
que já na volta
eu me tenha resignado
alegremente
a essa perda
pode ser
que o meu reflexo sujo
no vidro da lanchonete
seja uma imagem de mim
mais exata
do que esta fotografia
mais exata do que a lembrança
que tem de mim
uma antiga colega de colégio
mais exata do que a ideia
que eu mesma
agora tenho de mim
e portanto pode ser
que a moça cansada
de olhos tristes
que trabalha na lanchonete
tenha de mim uma imagem
mais fiel
do que qualquer outra pessoa
pode ser que um gesto
um jeito de dobrar os lábios
te devolva
subitamente
toda a infância
do mesmo modo que uma xícara
pode valer uma viagem
e uma cadeira
pode equivaler a uma cidade
mas um cachorro estirado ao sol não é o sol
e uma quarta-feira não pode ser o mesmo
que uma vida inteira
pode ser
meu querido
que esquecendo em sua cama
meu brinco esquerdo
eu te obrigue mais tarde
a pensar em mim
ao menos por um momento
ao recolher o pequeno círculo
de prata
cujo peso
frio
você agora sente nas mãos
como se fosse
(mas ó tão inexato)
o meu amor