Ana Martins Marques: elegancia estética e ética

Porxmeyre

06/12/2020

Cando elaboro as selectas poéticas de mulleres poetas brasileiras, cada domingo, é moi frecuente que, de páxina web en páxina web existan bastantes ou moitos poemas a se repetir. Pois ben, no caso concreto de Ana Martins Marques iso acontece nunha proporción moitísimo menor. Iso quere dicir que, ou ben a poeta optou por difundir canta máis poesía mellor (no caso de ser consultada) ou ben que @s antólog@s teñen moitas dúbidas de cales son os seus mellores poemas e hai@s que optan por uns mentres otr@s se fixan noutros poemas (caso de non ser consultada)….do cal se deduce que a poesía de Ana Martins Marques ten tanta calidade que resulta complicadísimo escoller entre a súa producción poética.

Tamén é certo que Ana Martins Marques (Belo Horizonte, 1977) xa posúe un estimábel número de poemarios publicados, o cal contribúe a unha difusión extensa e variada. Mais non invalida o que antes dixemos.

Esta é a súa obra, polo que eu coñezo.

2009 – A vida submarina (Scriptum)

2011 – Da arte das armadilhas (Companhia das Letras)

2015 – O Livro das Semelhanças (Companhia das Letras)

2016 – Duas Janelas – com Marcos Siscar (Luna Parque Edições)

2017 – Como se fosse a casa (uma correspondência) – com Eduardo Jorge (Relicário)

2019 – Livro dos jardins (Quelonio)

Nunca o fago, mais hoxe quero singularizar un poema de Ana Martins Marques, porque me parece moi importante:

Agora deixa o livro

Volta os olhos

Para a janela

A cidade

A rua

O chão

O corpo mais próximo

Tuas próprias mãos:

Aí também

Se lê.

E paréceme importante porque nel se refire ao que eu denomino “terceiro grao do analfabetismo”.  Sábese que primeiro grao é o de quen non sabe ler nin escribir. Despois vén o segundo grao, o de quen sabe ler e escribir mais non consegue establecer tema e intención do que leu; é moi frecuente hoxe. E aínda hai o que eu chamo terceiro grao: o de quen non sabe ler no seu entorno, nos sinais que vai deixando a vida, como no poema se reflicte de forma tan bela.

Á marxe de todo iso tamén quero salientar a amplitude da visión poética desta autora, que é tan capaz de reparar nos obxectos da casa no día a día e de aí extraer poesía, e poesía de grande calidade, como levarnos por xardíns de xeografías ben apartadas da brasileira tocando temas que resultan do noso máximo interese porque tratan asuntos que están moi dentro de nós.

É como se a poesía de Ana Martins Marques nos envolverá con palabras a pel toda, e entón dicimos “quen ben, é bonita esta poesía”, momento no cal percibimos que a poesía non ficou na pel senón que se adentrou moi dentro de nós, no interior máis interior do noso interior.

De aí que Marcos Siscar fale de humanismo acolledor.

Tamén merece destaque a pericia formal coa que se expresa. Non é moi habitual referirse a ela, mais a min paréceme necesario e xusto. Non todo vale na poesía. Non chega con escribir liñas que non rematan na marxe. É necesaria unha capacidade observación ou sensibilidade que indique onde está a poesía, o que queremos transmitir. Mais tamén é necesaria a pericia técnica que nos permita facelo con efectividade, beleza e conmoción.

Lin nunha entrevista que se considera unha persoa distraída. Isto é o mesmo que dicir que a capacidade de abstracción para ela é algo natural. E non esquezamos que a abstracción é precisamente aquilo que nos permite “ver” cousas que doutra maneira, nun estado normal de consciencia e concentración no mundo real e tamén no abstracto, non reararíamos nelas nunca. E ademais é quen de transmitir con suma elegancia estética, acompañada da elegancia ética.

Ana Martins Marques, elegancia na ética e tamén na estética.

Este é o seu Facebook

E agora, a súa poesía.

(Na Ruído Manifesto)

Minas

Se eu encostasse

meu ouvido

no seu peito

ouviria o tumulto

do mar

o alarido estridente

dos banhistas

cegos de sol

o baque

das ondas

quando despencam

na praia

Vem

escuta

no meu peito

o silêncio

elementar

dos metais

*

Poema de verão

Você está sob a luz

de certos poemas cheios de sol

sua mão faz sombra sobre a página

encobrindo algumas palavras

a palavra menina agora está à sombra

a palavra retângulo

a palavra brinquedo

as outras palavras ficam pairando

no poema como partículas de poeira

brilhando na luz

você gostaria de escrever poemas assim

em que se encontrasse de repente

o esqueleto alvo de um animal pequeno

ou em que um jovem casal dormisse

dentro de uma picape vermelha

ou ao menos em que houvesse uma raposa

vinho de maçã, cadeiras desdobráveis

e onde as cervejas fossem postas para esfriar

dentro de um rio

você gostaria de escrever um poema

em que acontecessem tantas coisas

e as palavras vibrassem um pouco

num acordo tácito

com as coisas vivas

em vez disso você escreve este

*

O que nos aconteceu

o que não nos aconteceu

têm o mesmo peso no poema

Ontem visitamos

nosso amigo doente

era comovente ver seu esforço

para parecer melhor do que estava

Andamos um pouco pela praia

a certa altura me dei conta

de que nunca perguntei onde ele nasceu

Encontramos uma água-viva na areia

alguém disse que ser assim

indistinguível como a areia da areia

o mar do mar

deve ser algo próximo da felicidade

Uma dessas coisas não aconteceu

*

Jardim francês

Esculpir-me

como a uma

cerca viva

erigir-me

severa e simétrica

construir-me em volta

de um palácio (vazio)

ou apenas costurar-me

em torno

do touro

*

Jardim inglês

Aprendi que tudo o que vive

tudo o que cresce

vive e cresce

contra o cálculo

desde então

alamedas amplas me dividem

não exatamente

ao meio

*

Jardim japonês

Arqueio-me como uma ponte de madeira

sobre um lago aceso por carpas vermelhas

sou dura e seca e quase sem enfeites

como um jardim de areia

(mas há pedras que florem

como flores)

silenciosa como um papel de arroz

em que ainda

nada

foi escrito

*

Língua  

1

no princípio

toda língua é estrangeira

acerca-se do seu corpo como de uma cidade

até tomá-lo

fazê-lo chamar-se a si mesmo pelos nomes

que lhe dá

pé perna barriga dentes

fazer a língua chamar-se língua

chamar-se a si mesma pelo nome dela

língua

acerca-se até domá-la

para ensinar-lhe uma coreografia sua

que ela, língua, por sua vez

ensina ao pensamento

cantando

estar na língua como numa

casa louca

que obriga ao abrigar

ela pensa o seu sexo

ela pensa o seu coração

abrindo-o

ela é música

e combate

ela fala na sua boca

com a boca dos mortos

ela é a eletricidade

dos cadáveres

daqueles cuja boca ela encheu

antes da terra

ela cria raízes no seu corpo

dela não é possível se livrar

você é livro

dela

e se aprende outra

é contra ela

contra sua memória

excessiva

e em viagem

com ela

que te cobra e cobre

como um mar

2

Ou é um dueto

uma dança

muito antiga

dela você também se acerca

toma as palavras emprestadas

e empresta-lhes também

sua energia

sua coragem ou doçura

e talvez seja mesmo possível

descartá-la

dissolver-se num mar que não o seu       (Cf. Jorge de Sena, “Noções de linguística”)

livrar-se dela

trocá-la por outra

mais nova ou versátil

(meus únicos heróis

são os tradutores)

ou pouco importa a língua

mas o dizer as coisas

que ao serem ditas

extinguem-se

mas com que fulgor

(escrever poemas:

não se contentar com as línguas que se sabe

nem mesmo com as línguas que há)

as línguas são meios

de viagem, são meios

de transporte as palavras:

carrega consigo o camelo o arranha-céu

a baleia

não só a baleia

todas as baleias

não só o amor

todo o amor

……………………………….

(Na USP.BR)

Poemas selecionados dos livros A vida submarina, Da arte

das armadilhas, O livro das semelhanças e Duas janelas

Poemas do livro A vida submarina (Scriptum, 2009)

Da série “Arquitetura de interiores”

sala

na sala decorada

pela noite

e pelo imenso desejo,

nossas xícaras

lascadas

cozinha

nostálgicas de um tempo de intermináveis almoços

banha de porco alho pão açúcar sujeira

dias que vertiam leite vinhos fortes azeite mel

rituais sangrentos de morte carne sangue e fogo

alvoroço de primos cozinheiras e restos aos cachorros

as panelas de seu desuso observam

a mulher sozinha o jornal do dia o café solúvel

e duas xícaras irônicas no aparador

porta

a porta

como toda fronteira

é apenas para se atravessar

rapidamente ela já não serve mais

um corpo-a-corpo

e já se está do outro lado

dela nasce o fora e o dentro

ela que é seu vazio

jardim

a mesa de lata

a cobra verde da mangueira

os canteiros bobos de manjericão

e mato

as rosas enrugadas como tias

atraindo formigas como xícaras mal lavadas

os brinquedos esquecidos

estragando-se de espaço

servidos todos de seu alimento

de sol e nuvem

guarda-roupa

seu vestido de verão

sem você dentro

não é um vestido de verão

porque no vestido o verão

era você

mesa

mais importante que ter uma memória é ter uma mesa

mais importante que já ter amado um dia é ter uma mesa sólida

uma mesa que é como uma cama diurna

com seu coração de árvore, de floresta

é importante em matéria de amor não meter os pés pelas mãos

mas mais importante é ter uma mesa

porque uma mesa é uma espécie de chão que apoia

os que ainda não caíram de vez

DARDO

Existe o corpo,

o eixo dos joelhos, as dobras,

a força teatral dos membros, o gosto acre,

o extremo silêncio,

as mão pendentes.

Existe o mundo,

as savanas e o iceberg,

as horas velozes, o falcão,

o crescimento secreto

das plantas, o repouso dos objetos

que envelhecem no uso, sem dor.

Existe o poema,

um dardo atirado a coisas mínimas,

à noite, às cicatrizes.

Um secreto amor os une,

as mãos na água, a memória do verão,

o poema ao sol.

Poema do livro Da arte das armadilhas (Companhia das Letras, 2011)

RELÓGIO

De que nos serviria

um relógio?

se lavamos as roupas brancas:

é dia

as roupas escuras:

é noite

se partes com a faca uma laranja

em duas:

dia

se abres com os dedos um figo

maduro:

noite

se derramamos água:

dia

se entornamos vinho:

noite

quando ouvimos o alarme da torradeira

ou a chaleira como um pequeno animal

que tentasse cantar:

dia

quando abrimos certos livros lentos

e os mantemos acesos

à custa de álcool, cigarros, silêncio:

noite

se adoçamos o chá:

dia

se não o adoçamos:

noite

se varremos a casa ou a enceramos:

dia

se nela passamos panos úmidos:

noite

se temos enxaquecas, eczemas, alergias:

dia

se temos febre, cólicas, inflamações:

noite

aspirinas, raio-x, exame de urina:

dia

ataduras, compressas, unguentos:

noite

se esquento em banho-maria o mel que cristalizou

ou uso limões para limpar os vidros:

dia

se depois de comer maçãs

guardo por capricho o papel roxo escuro:

noite

se bato claras em neve:

dia

se cozinho beterrabas grandes:

noite

se escrevemos a lápis em papel pautado:

dia

se dobramos as folhas ou as amassamos:

noite

(extensões e cimos:

dia

camadas e dobras:

noite)

se esqueces no forno um bolo

amarelo:

dia

se deixas a água fervendo

sozinha:

noite

se pela janela o mar está quieto

lerdo e engordurado

como uma poça de óleo:

dia

se está raivoso

espumando

como um cachorro hidrófobo:

noite

se um pinguim chega a Ipanema

e deitando-se na areia quente sente ferver

seu coração gelado:

dia

se uma baleia encalha na maré baixa

e morre pesada, escura,

como numa ópera, cantando:

noite

se desabotoas lentamente

tua camisa branca:

dia

se nos despimos com ânsia

criando em torno de nós um ardente círculo de panos:

noite

se um besouro verde brilhante bate repetidamente

contra o vidro:

dia

se uma abelha ronda a sala

desorientada pelo sexo:

noite

de que nos serviria

um relógio?

Poemas de O livro das semelhanças (Companhia das Letras, 2015)

TRADUÇÃO

Este poema

em outra língua

seria outro poema

um relógio atrasado

que marca a hora certa

de algum outro lugar

uma criança que inventa

uma língua só para falar

com outra criança

uma casa de montanha

reconstruída sobre a praia

corroída pouco a pouco pela presença do mar

o importante é que

num determinado ponto

os poemas fiquem emparelhados

como em certos problemas de física

de velhos livros escolares

5 poemas da série “Cartografias”

E então você chegou

como quem deixa cair

sobre um mapa

esquecido aberto sobre a mesa

um pouco de café uma gota de mel

cinzas de cigarro

preenchendo

por descuido

um qualquer lugar até então

deserto

*

Você fez questão

de dobrar o mapa

de modo que nossas cidades

distantes uma da outra

exatos 1.720 km

fizessem subitamente

fronteira

*

Combinamos por fim de nos encontrar

na esquina das nossas ruas

que não se cruzam

*

Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem

mas posso esquecer uma laranja sobre o México

desenhar um veleiro sobre a Índia

pintar as ilhas de Cabo Verde uma a uma

como se fossem unhas

duplicar a África com um espelho

criar sobre o Atlântico um círculo de água

pousando sobre ele meu copo de cerveja

circunscrever a Islândia com meu anel de noivado

ou ocultar o Sri Lanka depositando sobre ele

uma moeda média

visitar os nomes das cidades

levar o mundo a passeio

por ruas conhecidas

abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse

apenas para que tome

algum sol

*

Quando enfim

fechássemos o mapa

o mundo se dobraria sobre si mesmo

e o meio-dia

recostado sobre a meia-noite

iluminaria os lugares

mais secretos

É bom lembrar lembranças dos outros

como quem se oferece para carregar as compras de supermercado

de outra pessoa

é bom usar palavras que nunca usamos, palavras

que só conhecemos dos livros de botânica dos anúncios

de cruzeiros dos contratos de locação

é bom portanto usar palavras emprestadas

nem que seja para lembrar

que só temos palavras de segunda mão

é bom ficar de vez em quando para dormir

na casa de um amigo

usar uma velha camiseta dele habitar

alguns de seus hábitos

usar à noite se possível

um de seus sonhos recorrentes

é bom encontrar uma vez ou outra pessoas

que conhecemos na infância

é bom nos esforçarmos por um tempo

para parecer com a lembrança delas

é bom topar de repente com um tanto de areia

no bolso de uma calça jeans que há tempos não usamos

seguir as instruções do horóscopo de um signo

que rege um dia em que não nascemos

vestir-nos de acordo com a previsão do tempo

de uma cidade que nunca pensamos visitar

é bom ao menos uma vez na vida fazer uma viagem

em companhia de um parente morto

é bom escrever de vez em quando poemas

com viagens por dentro

com cidades e memórias de paisagens por dentro

que pareçam escritos

por outra pessoa

O passado anda atrás de nós

como os detetives os cobradores os ladrões

o futuro anda na frente

como as crianças os guias de montanha

os maratonistas melhores

do que nós

salvo engano o futuro não se imprime

como o passado nas pedras nos móveis no rosto

das pessoas que conhecemos

o passado ao contrário dos gatos

não se limpa a si mesmo

aos cães domesticados se ensina

a andar sempre atrás do dono

mas os cães o passado só aparentemente nos pertencem

pense em como do lodo primeiro surgiu esta poltrona este livro

este besouro este vulcão este despenhadeiro

à frente de nós à frente deles

corre o cão

O LIVRO DAS SEMELHANÇAS

O modo como o seu nome dito muito baixo pode ser confundido com a palavra xícara

e como ele esquenta de dentro para fora

o modo como a palma das suas mãos se parece com porcelana trincada

o modo como ao levantar-se você lembra um grande felino

mas ao caminhar já não se parece com um animal mas com uma máquina rápida

e de costas sempre me lembra um navio partindo

embora de frente nunca pareça um navio chegando

o modo como dita por você a palavra “sim” parece uma palavra

que fizesse o mesmo sentido em todas as línguas

o modo como dita por você a palavra “não” parece uma palavra

que você acabou de inventar

o parentesco entre as fotografias rasgadas os brinquedos esquecidos na chuva cartas

que deixamos de enviar produtos em liquidação frases escritas entre parênteses

papel de presente as toalhas que acabamos de usar e massa de pão

e, mais importante, o parentesco de tudo isso

com o modo como você chama o táxi por telefone

a camisa branca que você acabou de despir sempre me lembra um livro aberto ao sol

seus sapatos deixados na sala sempre me parecem ensaiar os primeiros passos de dança

numa versão musical para o cinema do seu livro preferido

o modo como no seu apartamento as coisas sempre parecem estar em casa

e você sempre parece estar de visita

e como você pede licença à penteadeira para chorar

o modo como as nossas conversas me lembram bilhetes interceptados cardápios de

restaurantes exóticos rótulos de bebidas fortes documentos comidos nas bordas

por filhotes de cão

o modo como os seus cabelos parecem as linhas de um livro lido por uma criança

que ainda não sabe ler

ou apenas desenhos que alguém por equívoco tomasse por escrita

o modo como os seus sonhos parecem os pensamentos de pessoas que sobreviveram

a um desastre de avião

parecem as lembranças de um ex-boxeador apaixonado

parecem os projetos de futuro de crianças muito pequenas

parecem os contos de fadas preferidos de ditadores sanguinários

os parentescos entre as guerras íntimas os jogos de armar as primeiras viagens sem

os pais os países coloridos de vermelho no mapa-múndi pessoas que sempre esquecem

as chaves as primeiras palavras ditas pela manhã e a disposição para usar a violência

o modo como apesar de tudo isso você não se parece com ninguém

a não ser talvez com certas coisas

similares a nada

Poemas do livro Duas janelas (com Marcos Siscar. Luna Parque, 2016)

Uma alegria haver línguas

que não entendo

delas foram varridas

as lembranças todas

nelas o sentido passa entre as palavras

como a luz entre as plantas

nelas é sempre a infância

balbucio, manhã, cachorros

nelas as núpcias de tudo

com tudo

se celebram

nelas tudo é ruído

doce, antigos barulhos

nelas não há

como na nossa

mortos por baixo

(ou antes há muitos

só não

os nossos)

nelas as palavras de amor

ainda crepitam

como madeiras novas

ando nas ruas entre as pessoas

que cantam (parece-me que cantam)

nessa língua que não entendo

parece-me que expressam claramente

a vida e a morte própria

e dos outros

ou que apenas gorjeiam

sibilam, silvam

ando nas ruas e é como uma conferência

de pássaros, pianos roucos

ando nas ruas e é como se lesse

às pressas

cartas em chamas

ando nas ruas pensando como é possível

tantas pessoas falando nada

em voz alta

quando me dirigem por equívoco

a palavra sorrio como se pedisse desculpas

depois fico tentada a correr atrás daquela pessoa

e devolver-lhe a palavra que ela deixou

cair por descuido

…………………………..

(En Tudo é poema)

A memória lê o dia
de trás para frente

acendo um poema em outro poema
como quem acende um cigarro no outro

que vestígio deixamos
do que não fizemos?
como os buracos funcionam?

somos cada vez mais jovens
nas fotografias

de trás para frente
a memória lê o dia

……………………………………..

(En Templo cultural Delfos)

Açucareiro
De amargo
basta
o amor

Agridoce,
ela disse

Mas a mim
pareceu
amargo
– Ana Martins Marques, em “Da arte das armadilhas”. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

§

Ainda é tarde…
Ainda é tarde
para saber
Ainda há facas
cruas demais para o corte

Ainda há música
no intervalo entre as canções

Escuta: 
é música ainda

Ainda há cinzas
por dizer
– Ana Martins Marques, em “O livro das dessemelhanças”. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

§

Barcos de papel
Os poemas em geral são feitos de palavras
no papel
seria melhor se fossem de pano
porque poderiam tomar chuva
ou de madeira
porque sustentariam uma casa
mas em geral são feitos de palavras
no papel
e por isso servem para poucas coisas
entre as quais não se encontra
tomar chuva
ou sustentar uma casa.

Dobrados sobre si mesmos,
lançam-se no mundo
com a coragem suicida
dos barcos de papel.
– Ana Martins Marques, em “A vida submarina”. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.

§

Cadeira
I
Repetes
diariamente
os gestos
do primeiro homem
que se sentou
numa tarde quente
olhando as savanas

II
Pouso
de gigantescos pássaros
cansados
– Ana Martins Marques, em “Da arte das armadilhas”. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

§


Em branco

Dizem que Cézanne
quando certa vez pintou um quadro
deixando inacabada parte de uma maçã
pintou apenas a parte da maçã
que compreendia.

É por isso
meu amor
que eu dedico a você
este poema

em branco.
– Ana Martins Marques, em “A vida submarina”. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.

§ 

Esconderijo

Estas são palavras que eu não

deveria dizer

palavras que ninguém

deveria ouvir

que elas permanecessem no silêncio

de onde vêm

no fundo escuro da língua

cheio de doçura e ruídos

com o ranço informulado

dos segredos

por via das dúvidas escondi-as aqui

neste poema

onde ninguém as vai encontrar 

– Ana Martins Marques, em “O livro das dessemelhanças”. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

§

Fruteira
Quem se lembrou de pôr sobre a mesa
essas doces evidências
da morte?
– Ana Martins Marques, em “Da arte das armadilhas”. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

§


Leque
Contra o fundo da noite
desenha-se
a sua nudez
como um lápis

pele de
penumbra
poças de 
rosas quentes

luz diagonal
nos lençóis
de há pouco

e por fim
você se abre 
como um leque.
– Ana Martins Marques, em “A vida submarina”. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.

§

Nome do autor
Impresso
como parece estranho
o mesmo nome
com que te chamam
– Ana Martins Marques, em “O livro das dessemelhanças”. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

§

O que eu sei?

Sei poucas coisas sei que ler

é uma coreografia

que concentrar-se é distrair-se

sei que primeiro se ama um nome sei

que o que se ama no amor é o nome do amor

sei poucas coisas esqueço rápido as coisas

que sei sei que esquecer é musical

sei que o que aprendi do mar não foi o mar

que só a morte ensina o que ela ensina

sei que é um mundo de medo de vizinhança

de sono de animais de medo

sei que as forças do convívio sobrevivem no tempo

apagando-se porém

sei que a desistência resiste

que esperar é violento

sei que a intimidade é o nome que se dá

a uma infinita distância

sei poucas coisas

– Ana Martins Marques, em “O livro das dessemelhanças”. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

§

Papel de arroz
Mira: 
as coisas construídas oscilam
numa frágil arquitetura
(os papéis cultivados
em campos
guardarão sempre a memória seca
dos dias alagados).
Também as palavras revelam somente o que escondem:
eis a solução de uma questão
delicada.
– Ana Martins Marques, em “A vida submarina”. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.

§

Papel de seda

Houve um tempo em que se usava

nos livros

papel de seda para separar

as palavras e as imagens

receavam talvez que as palavras

pudessem ser tomadas pelos desenhos

que eram

receavam talvez que os desenhos 

pudessem ser entendidos como as palavras

que eram

receavam a comunhão universal

dos traços

receavam que as palavras e as imagens

não fossem vistas como rivais

que são

mas como iguais

que são

receavam o atrito entre texto

e ilustração

receavam que lêssemos tudo

os sulcos no papel e as pregas de saias

das mocinhas retratadas

as linhas da paisagem e o contorno das casas

eu receava rasgar o papel de seda

erótico como roupa íntima

– Ana Martins Marques, em “O livro das dessemelhanças”. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

§


Relâmpagos
Certas máquinas são feitas para o esquecimento.
Há dias em que sinto trabalharem em mim
as confusões do relâmpago.
Então coleciono letras, órbitas, radares.
A linha que me liga aos quadris dessa noite imensa
é a mesma que sai da garganta aberta do dia.
Vejo as estrelas desenharem-se em constelações,
sei muitas coisas rápidas, precisas,
por alguns instantes.
– Ana Martins Marques, em “A vida submarina”. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.

§

Reparos
Algumas coisas
quando se quebram
são fáceis de consertar:
uma xícara lascada
uma estatueta de gesso
um sapato velho
uma receita que desanda
ou uma amizade arruinada.
Ainda que guardem
as marcas do remendo,
é possível que essas marcas
tenham um certo charme
como algumas cicatrizes.
Mas experimente consertar
um poema que estragou.
– Ana Martins Marques, em “A vida submarina”. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.

§

Talheres

Colher

Se o sol nela

batesse

em cheio

por exemplo

numa mesa posta

no jardim

imediatamente se formaria

um pequeno lago

de luz

Garfo

Em três ramos

floresce

o metal

Faca

Sua fria elegância

não escamoteia

o fato:

é ela que melhor se presta

ao assassinato

– Ana Martins Marques, em “Da arte das armadilhas”. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

§

Título
Suspenso
sobre o livro
como um lustre
num teatro
– Ana Martins Marques, em “O livro das dessemelhanças”. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

§

………………………………………….

(En António Miranda. com)

  1.
         em pelos de bigode
         negros brancos.
         imita, em suíte.
         o avesso do atlântico.
         ele frequenta os extremos do dia.
         desperta a língua materna
         na ponta dos nervos:
         esta viva.
         ela se move com enganos.
         e à noite, com olhos de museu,
         observa observadores
         e ama imagens com
         cegueira sintática, com as mãos,
         as unhas em flores,
         habitando uma verdade de vidro
         soluçou dentro do vestido,
         em técnica água com açúcar,
         o canto das vigas em cálculo e cálcio
         é o ritmo do outro lado do mar,
         a língua-lâmina vai e volta
         sob os pelos do bigode:
         uma noite a noite aparece
         o vidro contra vapor, a hora do hálito,
         houvesse ali ela morado e alô
         com barulho de talheres
         seria a leitora de bigode branco
         postiço par irregular contradiz
         o impar, se ela personne personae.
         busca a porta em terceira pessoa.
         uma ana neutra, protegida
         em dicionário germânico,
         traz uma fortaleza cifrada.
         quem lê poemas expõe
         o dorso à intimidade da casa.

         por isso.

2.

         moro na cidade explicada
         em várias línguas,
         muitas delas não-latinas:
         não entendo a cidade
         na qual vivo, todavia.
         enquanto me banho
         ou quando os vizinhos
         têm sexo, as explicações
         da cidade, palavra por palavra,
         entram por um ouvido,
         saem por outro.
         o letreiro Roma 24 horas
         anuncia falanges á dúzia:
         Rômulo, Remo, por exemplo,
         gritam: “leite de loba” ou
         “hora da sopa”, desço
         banhado, a colher de prata
         no bolso do roupão bordado
         Immer der Sonne entgen.
         o bigode branco-preto reaparece,
         a corcova está maior e o esforço
         para ouvir o que ela lê em imagem
         permanece: se poema, borra de café ou
         as explicações da cidade onde moro.

…..

Espelho

Dentro do armário

do seu quarto de dormir

deve haver um espelho.

Se você sai

e deixa o armário aberto

durante todo o dia

o espelho reflete

um pedaço da sua cama

desfeita.

Se você sai

e deixa a porta fechada

durante todo o dia

o espelho reflete o escuro

do seu armário de roupas,

a luz contida dos vidros

de perfume.

Do outro lado do poema
não há nada.


Vaso

Moldar em torno do nada
uma forma
aberta e fechada.

Palavra por palavra
o poema circunscreve seu vazio.


Leque

Contra o fundo da noite
desenha-se
a sua nudez
como um lápis

pele de
penumbra
poças de
rosas quentes

luz diagonal
nos lençóis
de há pouco

e por fim
você se abre
como um leque.


Memória (I)

As unhas não guardam
marcas dos amores que,
delicadas, destroçaram.

Os olhos não retêm
a memória das imagens
indecifradas.

Com a lembrança pousada
na praia antiga de um beijo,
procuro
desatenta
traçar o mapa do desejo,
sua secreta geografia.

……………..

.

Noite adentro

Atado a um barco na noite
o sono curva-se sobre si mesmo,
entregue ao movimento secreto das ondas.
Durmo, acordo, vem dos livros fechados
o cheiro escuro dos sargaços.
Neste quarto, noite adentro, percebe-se
a presença perturbadora do mar:
nas estantes, nos tapetes, nos móveis submersos.
Nas paredes lisas de cansaço.
Sou jogada no sono de um sonho a outro,
lançada entre corais, como um peixe
que dorme na ressaca.
Quando for preciso novamente
acordar para o dia,
o mar terá se afastado lentamente
e voltado a ocupar o lugar
onde o vejo
pela janela esquerda do quarto.

PENÉLOPE

I

O que o dia tece,

a noite esquece.

O que o dia traça;

a noite esgarça.

De dia, tramas,

de noite, traças.

De dia, sedas,

de noite, perdas.

De dia, malhas,

de noite, falhas.

II

A trama do dia

na urdidura da noite

ou a trama da noite

na urdidura do dia

enquanto teço:

a fidelidade por um fio.

III

De dia dedais.

Na noite ninguém.

IV

E ela não disse

já não te pertenço

há muito entreguei meu coração ao sossego

enquanto seu coração balançava em viagem

enquanto eu me consumia

entre os panos da noite

você percorria distâncias insuspeitadas

corpos encantados de mulheres com cujas línguas

estranhas eu poderia tecer uma mortalha

da nossa língua comum.

E ela não disse

no início ainda pensei em você

primeiro como quem arde diante de uma fogueira

apenas extinta

depois como quem visita em lembrança a praia da infância

e então como quem recorda o amplo verão

e depois como quem esquece;

E ela também não disse

a solidão pode ter muitas formas,

tantas quantas são as terras estrangeiras,

e ela é sempre hospitaleira.

V

A viagem pela espera

é sem retorno.

Quantas vezes a noite teceu

a mortalha do dia.

quantas vezes o dia

desteceu sua mortalha?

Quantas vezes ensaiei o retorno —

o rito dos risos,

espelho tenro, cabelos trançados,

casa salgada, coração veloz?

A espera é a flor que eu consigo.

Água do mar, vinho tinto — o mesmo copo.

VI

E então se sentam

lado a lado

para que ela lhe narre

a odisseia da espera.

CAÇADA

E o que é o amor

senão a pressa

da presa

em prender-se?

A pressa

da presa

em

perder-se

COLEÇÃO

Colecionamos objetos

mas não o espaço

entre os objetos

fotos

mas não o tempo

entre as fotos

selos

mas não

viagens

lepidópteros

mas não

seu voo

garrafas

mas não

a memória da sede

discos

mas nunca

o pequeno intervalo de silêncio

entre duas canções

………………………..

(En Poesía Primata)

.

REGADOR

Num canto do jardim
onde alguém o esqueceu
pronto, ereto, o regador
aponta para o sol

embaraçadas por dentro
flores rápidas ou lentas
florem
findam

MITOLÓGICAS

Mortos em águas calmas
conservam os cabelos lisos
mortos em águas revoltas
os trazem encaracolados.
Eu, que morri de amor,
tenho os cabelos negros
pois morri em águas turvas
tenho os cabelos longos
pois morri em águas fundas
– sigo descabelada.


À BEIRA-MAR

Se eu vivesse
à beira-mar
teria
outra cor
outros cabelos
outras maneiras
de ferir-me
ou alegrar-me
me apartamento
meus sapatos
meus livros
minha boca
meus olhos
estariam cheios de areia
de céu de falésias
de gaivotas de água
eu me apaixonaria
por homens diferentes
e decerto aprenderia
a dançar
teria um senso de direção
mais apurado
gastaria meu dinheiro
com outras coisas
e as palavras
que eu usaria
seriam outras
talvez tivesse um altar
para anjos anfíbios
e obscuros deuses
do mar
talvez desse
festas
vestisse apenas
branco
gritasse com
os pássaros
talvez frequentasse
à tarde
a biblioteca municipal
teria outro ritmo
outro cheiro
outra velocidade
e pensaria no mar
de outro jeito
– eu perderia o mar
se o tivesse sempre por perto
como perco minhas canetas
meus guarda-chuvas meus isqueiros
essas coisas baratas
fáceis de encontrar?


I LIKE MY BODY

o meu corpo tão mais bonito
junto ao seu
músculos, pelos
meus seus cabelos
encostados nossos
joelhos juntos
densos, compactos
acidentes de ossos
nos seus braços
os meus braços
tão melhores
mãos encontradas
ao acaso das vértebras
um caminho
áspero, liso
pela pela
(sua língua
lenta
entre
entra)
o meu corpo tão mais bonito
junto ao seu
côncavas, iguais
nossas bocas
se recebem


DA ARTE DAS ARMADILHAS

O seu corpo para o meu:
seta,
precisamente

Inaudível
o mundo mudo
aciona o fecho
da flor

Há desilusão
mas não há
fuga

O caçador está
preso à presa

…………….

SEGUNDO POEMA
para Paulo Henriques Britto

Agora supostamente é mais fácil
o pior já passou; já começamos
basta manter a máquina girando
pregar os olhos do leitor na página

como botões numa camisa ou um peixe
preso ao anzol, arrastando consigo
a embarcação que é este livro
torcendo pra que ele não o deixe

pra isso só contamos com palavras
estas mesmas que usamos todo dia
como uma mesa um prego uma bacia

escada que depois deitamos fora
aqui elas são tudo o que nos resta
e só com elas contamos agora

POEMAS REUNIDOS

Sempre gostei dos livros
chamados poemas reunidos
pela ideia de festa ou de quermesse
como se os poemas se encontrassem
como parentes distantes
um pouco entediados
em volta de uma mesa
como ex-colegas de colégio
como amigas antigas para jogar cartas
como combatentes
numa arena
galos de briga
cavalos de corrida ou
boxeadores num ringue
como ministros de estado
numa cúpula
ou escolares em excursão
como amantes secretos
num quarto de hotel
às seis da tarde
enquanto sem alegria apagam-se as flores do papel de parede

Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem

mas posso esquecer uma laranja sobre o México
desenhar um veleiro sobre a Índia
pintar as ilhas de Cabo Verde uma a uma
como se fossem unhas
duplicar a África como um espelho
criar sobre o Atlântico um círculo de água
pousando sobre ele meu copo de cerveja
circunscrever a Islândia com meu anel de noivado
ou ocultas o Sri Lanka depositando sobre ele
uma moeda média
visitar os nomes das cidades
levar o mundo a passeio
por ruas conhecidas
abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse
apenas para que tome
algum sol

Abro o mapa na chuva
para ver
pouco a pouco
diluírem-se as fronteiras
as cidades borradas
diminuem de distância
as cores confundidas
nem parecem mais aleatórias
perderam aquele modo abrupto
com que as cores mudam nos mapas
agora há um grande lago
onde antes havia uma cordilheira
o mar não é mais molhado
do que o deserto logo ao lado

Deixo depois o mapa
para secar ao sol
sobre a grama do jardim
mais rápidas do que aviões
as formigas atravessam
de um continente a outro
uma lagarta riscada
apossou-se das Coreias
agora unificadas
um tapate de folhas
cobre o mar Egeu
e o rastro de uma lesma umedeceu
o Atacama
uma formiga enamorou-se
de um vulcão
exatamente do seu tamanho
um dos polos
ficou à sombra
e resfriou-se mais que o outro
de longe não sei se são moscas
ou os nomes das cidades

Penso que se deixasse o mapa aí
tempo o bastante
em algum momento surgiria
quem sabe
um pequeno inseto novo
com esse dom que têm os bichos
e as pedras e as flores e as folhas
de imitarem-se
uns aos outros
um pequeno inseto novo
eu dizia
um novo besouro talvez
que trouxesse desenhado nas costas
o arquipélago de Cabo Verde
ou as linhas finas das fronteiras
entre a Argélia e a Tunísia

6

Perder a cabeça
e então buscá-la
nos últimos lugares
onde esteve
dentro da touca
de banho
sobre o travesseiro
entre os joelhos
entre as mãos
na casa demolida
da infância
sobre suas coxas
mornas
ainda

9

Esperar horas a fio
e então desvencilhar-se
das coisas tecidas na espera
dos ponteiros do relógio
cada um mais lento que o outro
dos pelo menos dez cigarros
das poltronas de mogno
uma delas
vazia

Estou no dia de hoje como num cavalo
você está nas suas roupas como num navio
estamos na cidade como num teatro numa floresta na água
a tarde de terça é uma feira de bairro
nos encontramos quase por descuido
à mesa do café com sua toalha xadrez
de frente para o cinema contínuo do mar
no vagão deste mês setembro sereia sinuosa
era quente o dia era o equívoco das estações
era a música pequena da memória
estou no dia de hoje como num casaco largo demais
estou no país desta tarde estudei
na escola do enfado
você dobra a tarde como as mangas
da sua camisa branca
você desdobra a tarde como um guardanapo
lançado ao colo
você conhece os modos no que se refere às tarde
você sabe usar
os talheres da tarde
estou desconfortável no meu nome estou
na antessala do amor estou na estação
da espera queria distrair a morte
você conhece muitas coisas você sabe falar
sobre as coisas como esses bichos que conhecem
desde sempre as rotas ancestrais
como os pássaros que trazem impressos no corpo
os mapas migratórios você conhece a língua do amor
que eu soletro tão mal

(En O Ninho ea Tempestade)

ÍCARO

Somos os dois

Incompatíveis

como a cera

e o sol

e no entanto

parecemo-nos

como se parecem

o açúcar e o sal

devemos

porém

deixar

de insistir

pois se até

Ícaro

caiu

em si.

MÃOS

Uma trabalha mais que a outra.

Dividem o peso dos anéis.

Uma nunca aprendeu a escrever.

Com isso a outra tornou-se mais silenciosa,

mais firme, mais acostumada ao adeus.

Em alguns gestos entram as duas

numa mesma coreografia

como quando é necessário contar algo

mais que cinco.

Aceitam as manchas dos anos

como solteironas

que envelhecem juntas.

(En Desafiando o silencio)

Tenho quebrado copos
é o que tenho feito
raramente me machuco embora uma vez sim
uma vez quebrei um copo com as mãos
era frágil demais foi o que pensei
era feito para quebrar-se foi o que pensei
e não: eu fui feita para quebrar
em geral eles apenas se espatifam
na pia entre a louça branca e os talheres
(esses não quebram nunca) ou no chão
espalhando-se então com um baque luminoso
tenho recolhido cacos
tenho observado brevemente seu formato
pensando que acontecer é irreversível
pensando em como é fácil destroçar
tenho embrulhado os cacos com jornal
para que ninguém se machuque
como minha mãe me ensinou
como se fosse mesmo possível
evitar os cortes
(mas que não seja eu a ferir)
tenho andado a tentar
não me ferir e não ferir os outros
enquanto esgoto o estoque de copos
mas não tenho quebrado minhas próprias mãos
golpeando os azulejos
não tenho passado a noite
deitada no chão de mármore
estudando as trocas de calor
não tenho mastigado o vidro
procurando separar na boca
o sabor do sangue o sabor do sabão
nem tenho feito uma oração
pelo destino variado
do que antes era um
e por minha força morre múltiplo
tenho quebrado copos
para isso parece deram-me mãos
tenho depois encontrado
cacos que não recolhi
e que identifico por um brilho súbito
no chão da cozinha de manhã
tenho andado com cuidado
com os olhos no chão
à procura de algo que brilhe
e tenho quebrado copos
é o que tenho feito

…………………

(En Brainly)

Esperar junto àqueles
que caíram em si
que caíram na risada
que caíram no ridículo
que caíram do cavalo
que caíram das nuvens
que a noite
caia

…………………

(En Tudo é Poema)

Pode ser que como as estrelas
as coisas estejam separadas
por pequenos intervalos de tempo
pode ser que as nossas mãos
de um dia para o outro
deixem de caber
umas dentro das outras
pode ser que no caminho para o cinema
eu perca uma de minhas ideias
preferidas
e pode ser
que já na volta
eu me tenha resignado
alegremente
a essa perda
pode ser
que o meu reflexo sujo
no vidro da lanchonete
seja uma imagem de mim
mais exata
do que esta fotografia
mais exata do que a lembrança
que tem de mim
uma antiga colega de colégio
mais exata do que a ideia
que eu mesma
agora tenho de mim
e portanto pode ser
que a moça cansada
de olhos tristes
que trabalha na lanchonete
tenha de mim uma imagem
mais fiel
do que qualquer outra pessoa
pode ser que um gesto
um jeito de dobrar os lábios
te devolva
subitamente
toda a infância
do mesmo modo que uma xícara
pode valer uma viagem
e uma cadeira
pode equivaler a uma cidade
mas um cachorro estirado ao sol não é o sol
e uma quarta-feira não pode ser o mesmo
que uma vida inteira
pode ser
meu querido
que esquecendo em sua cama
meu brinco esquerdo
eu te obrigue mais tarde
a pensar em mim
ao menos por um momento
ao recolher o pequeno círculo
de prata
cujo peso
frio
você agora sente nas mãos
como se fosse
(mas ó tão inexato)
o meu amor

Porxmeyre

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