MATILDE CAMPILHO
As páxinas da Ferradura en Tránsito II, os domingos divulgan poesía brasileira de muller. Non vai ser este o caso, polo menos non estritamente, xa que Matilde Campilho (1982) concebiu o seu primeiro libro (Jóquei, 2014) no Brasil, foi “a musa” (esta denominación non é niña, e ademais discútoa moito porque non ten nada que ver con criterios literarios) do 13º Festival de Paraty, e alí publicou tamén os seus primeiros poemas en xornais cariocas, alén de videopoemas. Polo demais Jóquei en Portugal obtivo un grande “éxito”. Cando escribimos isto, polo que sabemos, viu catro edición nun ano, e vai pola segunda no Brasil.
(Claro que, para isto, tamén hai que saber de cantos exemplares contou cada edición…)
Dixemos “éxito” (“sucesso” en portugués) e a verdade é que este non foi/é unánime. Produciu moito efecto en en nomes como Carlito Azevedo e outros, mais tamén hai quen non dubida en dicir que a súa poesía é nihilista e tamén lin alguna opinión onde a chamaban “xuntapalabras”. E a verdade é que non me estraña. Primeiro porque Matilde é una poeta a quen o “impacto lírico” non a comprace moito . Dese xeito é máis fácil de comprender que en Jóquei a intensidade lírica non sexa uniforme, que sexa desigual e non constante. Alén de que a súa poesía (poderán comprobalo na selección que virá despois) tamén recorre con moita frecuencia ao mundo do cotián, ao descritivismo, e aí é fácil perder a intensidade lírica que se pode agradar na poesía.
Son moi comprensíbeis as críticas negativas que recibiu. E, entre as positivas eu non contaría como un mérito a temática do cotián, porque é una temática que vén desde o máis fondo dos tempos. Tamén, entre o positivo, se ten salientado a musicalidade, mesmo o “colorido” dos poemas de Matilde, ou as imaxes.
Entre as razón do seu éxito tamén hai que contar a difusión dos seus videopoemas (tamén os recollemos, no final, o que non recolleremos é, coma sempre a prosa poética), tanto porque declama moi ben como pola imaxe que transmite logrou ter moitísimos seguidores que despois, evidentemente, mercaron o libro.
Con todo, eu non teño dúbida de que Matilde Campilho pode dar nunha moi boa escritora. Actualmente vén de publicar Flecha, que é un libro de prosa breve que teño moitas ganas e curiosidade por ler e que está a recibir boas críticas. Cumpriríalle, por exemplo, ler con aproveitamento a Clarice Lispector, que para o tipo de escritora que é debe resultar lectura de moito proveito. Si, eu creo en Matilde Campliho, porque tamén escribe boa poesía, non todo é malo. Compróbeno. Dálle mellor resultado cando se decide por formatos breves, que transmiten mellor a intensidade lírica; cando precipita o ritmo tamén gaña en intensidade; ou cando se volve “máis experimental”, por exemplo usando diálogos.
Matilde Campilho, tamén chamada poeta “nómade” por ser moi afeccionada a viaxar (viviu en Madrid, en Milán, no Río de Janeiro, en varios lugares de Portugal e agora en Lisboa) tamén escribe en inglés, por exemplo.
Cando Matilde sexa quen de saír dela mesma, de verse (e a súa escrita) desde fóra e despois regresar con ganas de escribir, entón veremos a verdadeira escritora que leva dentro.
Coma sempre, estean atentos ao seu Facbook
PRÍNCIPE NO ROSEIRAL
Escute lá
isto é um poema
não fala de amor
não fala de cachecóis
azuis sobre os ombros
do cantor que suspende
os calcanhares
na berma do rochedo
Não fala do rolex
nem da bandeirola
da federação uruguaia
de esgrima
Não fala do lago drenado
na floresta americana
Não diz nada sobre
a confeitaria fedorenta
que recebe os notívagos
para o café da manhã
quando o dia já virou
Isto é um poema
não fala de comoções
na missa das sete
nem fala da percentagem
de mulheres que se espantam
com a imagem do marido
aparando a barba no ocaso
Não fala de tratores quebrados
na floresta americana
não fala da ideia de norte
na cidade dos revolucionários
Não fala de choro
não fala de virgens confusas
não fala de publicitários
de cotovelos gastos
Nem de manadas de cervos
Escute só
isto é um poema
não vai alinhar conceitos
do tipo liberdade igualdade e fé
Não vai ajeitar o cabelo
da menina que trabalha
com afinco na caixa registadora
do supermercado
Não vai melhorar
Não vai melhorar
isto é um poema
escute só
não fala de amor
não fala de santos
não fala de Deus
e nem fala do lavrador
que dedicou 38 anos
a descobrir uma visão
quase mística
do homem que canta
e atravessa
a estrada nacional 117
para chegar a casa
ou a algum lugar
próximo de casa.
***
COQUEIRAL
A saudade é um batimento que rebenta assim
vinte e oito vezes desde meu ombro tatuado
de desastre até à rosa pendurada em sua boca
E o amor, neste caso específico, é um mergulho
destemido que deriva quase sempre de uma nota
climática apenas para convergir no osso frontal
do crânio do rei da ilusão – terno é o seu rosto
Senhor, os ossinhos do mundo são de mel e ouro.
***
ATÉ AS RUÍNAS PODEMOS AMAR NESTE LUGAR
Lembro-me muito bem do tal cantor basco
que costumava celebrar a chuva no verão
Não ligava quase nada para as conspirações
que recorrentemente se faziam ouvir
debaixo das arcadas noturnas da cidade
naquela época do intermezzo lunar
Foi já depois do fascismo, um pouco antes
da democracia enfaixada em magnólias
O cantor, as arcadas, o perfume e os disparos
me ensinaram que se deve aproveitar a época
de transição para destrinçar o brilho
As revoluções sempre foram o lugar certo
para a descoberta do sossego:
talvez porque nenhuma casa é segura
talvez porque nenhum corpo é seguro
ou talvez porque depois de encarar uma arma
finalmente possa ser possível entender
as múltiplas possibilidades de uma arma.
…………………………………
Rua do Alecrim
Uma menina desenha uma estrela de cinco pontas
a esferográfica Bic na palma da mão de outra menina.
Chove, e mesmo assim o desenho não sangra:
é preciso muito mais do que certas condições
climatéricas para que o amor escorra.
Assisto a toda a cena e penso que esta visão,
real ou inventada,
é muito pior do que a verdade a bofetadas.
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O último Poema do último Príncipe
Era capaz de atravessar a cidade em bicicleta para te ver dançar.
E isso
diz muito sobre minha caixa torácica.
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Desmembramento de um Semicírculo
Certo que nos dedicamos
a místicas peregrinações.
Exercitamos a respiração,
lutamos brigas orientais,
praticamos uma e sete vezes
a tradução do poema chileno.
Mas no fundo sabemos
que o que importa mesmo
é roçar a superfície negra
da pele do peito do anjo
que está vivo
que não dorme
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Rio de Janeiro — Lisboa
um dia você
adora meus óculos
adoro os teus óculos
no dia seguinte
não quero que venhas na fazenda
três dias antes
você ia adorar este lugar
você quer vir até à fazenda?
um dia eu rasgo
o tecido celular do rosto
realizo um sorriso constante
que atravessa o morro
o ponto mágico do morro
rasgão alegre que fulmina
o veio mínimo da folha
de amendoeira
e pelo feixe de luz tropiquente
vai parar na cara de João
vendedor de suco no leblon
em ricochete João grita açaí!
qualquer dia eu vou e chego
no outro dia
a cidade se aborrece
desdignificada pela
gigante roleta
que se chama medo
o urubu fica empoleirado
na trave enferrujada
daquilo que já foi suporte
ao cartaz que anunciava
o novo mundo das piscinas
fosforescentes
o pássaro suspenso
olhando a via rápida
e catando caca
debaixo da unha
temendo o gira girar
da pequena roda
que circula sorte e azar
um dia você
escreve para seus pais
falando sobre o amor
quarenta dias depois
teus pais te escrevem
falando sobre redes de pesca
e o perigo das redes de pesca
um dia você me envia uma carta
depois a outra
o rasgão explode
recordando ainda outra carta
de alguns meses antes
o postal eterno que dizia
still crazy (after all
these years)
faço voto de silêncio
mas na sacralização
horária das avenidas
eu penso que você
sua mãe e seu pai
conversam muito
sobre peixes
e que isso mantém quieta
a roleta negra
e que isso mantém aparada
a unha do urubu
e que isso faz homenagem
a João e à fruta espessa
que brilha vermelha
em cada copo de minha cidade
um dia você diz que me a****
eu a****-te
no dia seguinte
a amendoeira se expande
e floresce cinco folhas mais
nesse dia reparo
que estamos contribuindo
você e eu
para o florestamento da cidade
de duas cidades
faço voto de silêncio
mas na sacralização horária
da respiração eu penso
que apesar da sala de casino
abrigo da gigante roleta do medo
apesar dos golpes de gmt -3
apesar da fita de seda que fica
ondulando sua medida de 7 800 km
estamos dando utilidade ao amor
alargando os braços das amendoeiras
alargando os braços dos jacarandás
partindo as inúteis linhas de fronteira
e fazendo do mundo
a gigante floresta
…………………………………..
PRINCIPADO EXTINTO
Isto é um poema
fala de amor
ou do medo do amor
Fala da morte
ou do fim da amálgama
rosto voz alma e cheiro
que é a morte
Isto é um poema
tenha medo
Fala dos peregrinos
que atravessam avenidas
de sobretudo e óculos
carregando flores invisíveis
e chorando mudos
Isto aqui é um poema
fala da permanência inútil
de um coração devastado
de uma floresta devastada
de uma corrida devastada
logo depois do disparo
da arma de 40 peças
que soltou a bandeirinha
e assim mesmo se desfez
Isto é um poema
fala da aparição do inverno
fala da fuga dos albatrozes
fala do punhal sobre a mesa
e do absurdo do punhal
feito de madeira e pedra
sobre a mesa do jantar
Fala do poder da erosão
que afinal incide sobre
pele e nervo e osso e olho
Fala do desaparecimento
Fala do desaparecimento
Claro que é um poema
fala do toque de saída
no colégio de Île de France
e das 39 saias das meninas
esvoaçando sem vontade
na direção do cais de ferro
Fala do pânico do corpo
que esbarra em si mesmo
no espelho pela manhã
e do urro silencioso
que nenhum vizinho
escuta mas que ainda
assim reverbera sem dó
até a hora final
fala do vômito que advém
dos gestos repetidos
prolongados assim ad astra
até que o sono apague tudo
Fala da palavra saudade
ou da palavra terremoto
fala do olho que tudo via
deixando lentamente de ver
até mesmo a cara de Jack Steam
o porteiro da loja de discos
onde toca a canção de Chavela
Nada mais no mundo importa
Isto é que é poema
Fala do cheiro das flores
e da injustiça da existência
das flores na cidade
Fala da dor excruciante
meu bem excruciante
que faz até desejar
o fim do poema
o fim da palavra amor
que após o disparo
se espelha apenas
na palavra loucura.
………………………………………….
ASCENDENTE ESCORPIÃO
Na noite em que Billy Ray nasceu
(rua 28, cruzamento cm a 7, Nova Iorque)
não havia ninguém dedicado à contemplação dos gerânios
Havia, isso sim, o som do mundo que caía
como estalactites múltiplas
sobre as cercanias do hospital
Automóveis, alguns a 90 km/hora, outros a 30 km/hora
Bombeiros correndo para salvar o cachorro
preso na escotilha do bote atracado no Hudson
O imigrante rendendo o caixa da loja de conveniência
para roubar alguns dólares e chicletes
Aquele casal na esquina à direita, os dois chorando,
terminando com razão o arrastado namoro de cinco anos
Rosa Burns entrando em casa sem pressa nenhuma,
lançando investidas à fechadura com a chave muito mais velha
que seu rosto – tremendo, tremendo, quase desistindo
desse negócio de viver e atirar no alvo
Havia o caminhão varrendo todos os pedaços de lixo da rua
Havia o ruído das fichas de pôquer sendo lançadas
sobre a mesa verde-gasto, entre dedos e fumaça
Alguém gritando, na explosão da minúscula morte
Alguém cantando a canção sul-americana
Alguém afagando o pescoço do pombo sem dono
Alguém jogando a bola de tênis contra a parede do quarto,
repetidamente, repetidamente, repetidamente
Havia o rádio no on tocando algum barulhinho em onda média
Havia uma bruxa cozinhando azevinho & cobre na panela
do apartamento de paredes queimadas
Na noite do nascimento de Billy Ray
ao mesmo tempo que ele escutava o som gelatinoso
da placenta de onde era arrancado
e depois o som da passagem pelo canal uterino de sua mãe
e depois o som do primeiro toque em sua cabeça
e depois o som de seu próprio grito
o grito que inaugura a festa
O mundo se reunia inteiro
entre a rua 28 e a rua 7
em Nova Iorque
para rezar a oração dos pequenos gestos
o aleluia da existência ocidental :
centenas de homens vergados
fazendo vênia à metafísica suficiente
que existe nos corredores do mundo
e se extrapola até o infinito luar.
O APARECIMENTO DAS CAVEIRAS NO LENÇOL DA VIA LÁCTEA
Minha cara está envelhecendo
antes de mim
Reconheço meus deuses
e se supõe que Jonas
também tenha reconhecido a baleia
antes da grande meditação
antes do grande silêncio
ou antes de escavar
a costela de sal
Pratico mergulho-prego
desde a rocha mais alta
como é próprio da estação
E antes do salto
sempre peço a Deus
que a guerra não me seja
de todo indiferente
Porque foi assim
que me ensinou a santa
Foi assim que me segredou
a estrada de fogo
da oitava região
Há uma seleção de catástrofes
se apresentando firmes
Coisas do tipo
A figura da menina russa
que passa no parquinho
acenando 3 pêssegos
dentro da bolsa de plástico
Como se fosse um arqueiro
fazendo show-off
de suas setas douradas
no fio solar de agosto
Minha cara está marcada
por revoluções e iodo
por estilhaços de cobre
e pelo silêncio profundo
de los angelitos negros
à hora do café com açúcar
Carrego nas costas
a espada de plástico
que corta o friso nublado
entre signo e ascendente
Sim eu me aproximo
cada vez mais de meu ascendente
enquanto faço pazes com meu sol
Reconheço meus heróis
mas pelo sim pelo não
ainda guardo em meu bolso
a nota de cinco dólares
que me ofereceu o nômade
que cantava no deserto.
………………………………..
PELE DE COURO
Foi no tempo em que
(como apontou Herbert)
adormecíamos
com uma mão debaixo da cabeça
e com a outra
num aterro de planetas
Morávamos na ilha
De Saint Naumpke
no palácio de estacas e cal
construído por nós mesmos
durante os trinta dias de agosto
Lá os anos nunca eram bissextos
O pão era feito de alecrim
Os pescadores vinham
ensinar-nos os dons
E isso era tudo
o que precisávamos
e precisaríamos mais tarde
para entender a língua de fogo
que se falava nas pracinhas
Por vezes eu pintava
minha cara de amarelo
só para perceber
a consciência telúrica
que trazem consigo alguns
jaguares e cobras corais
Nesse tempo
alguém preferia o relento
à escuridão das casas
e portanto saía para o parque
armado com binóculos
de lentes-diamante
só para se deparar
constantemente
com a fórmula exata
do tempo de crescimento
das folhas de laranja-lima
“O couro de Golias
foi deixado aqui,
há cinco séculos
atrás” era o que ele dizia
no regresso ao palácio
à hora da refeição
Vinha sujo e coberto de areia
Trazendo flores velhas
em seu balde metálico
Existiam heróis daquela pátria
mas eu nunca soube quais
Havia um beato sem rosto
a quem tinham feito um altar
junto à primeira rocha de Naumpke
Sua estátua era de aço
e a todas as manhãs
alguém deixava a seus pés
uma esteira de rosmaninho.
Aquele foi o nosso tempo,
o tempo da descoberta dos aterros
e das cavernas de que são feitas
as omoplatas dos amantes.
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ALGUÉM ME AVISOU
Ele falou que eu precisava voltar
porque eu era sua família
falou que os passarinhos
estavam começando de novo
com aquela entoação estranha
que poderia ser vista como triste
ou como bastante maravilhosa
você precisa voltar ele falou
algumas acácias estão se votando
ao abandono ou ao desespero
e a peixaria foi atacada
por uma enorme inundação
por favor volte veja se volta
esta manhã o taxista ficou
rodando todas as estações
de rádio até achar notícia
não tem notícia de você na cidade
faça-me um favor e volte
está acontecendo uma revolução
querem retirar o primeiro-ministro
de sua cadeira empedernida
querem tocar fogo nas estradas
querem melhorar a estrutura
do sino que marca o meio-dia
na garganta de Antoninho
ande veja se volta foi o que ele falou
você é minha família é impossível
assistir à transição do inverno
para a primavera sem família perto
e como faço para comprar lollypops
se você não estiver me esperando
lá fora do lado de fora em seu carro
brincando com as rotações do motor
enquanto eu fico tamborilando meus
dedos sobre a bancada de madeira
da mercearia onde sempre compro
lollypops de laranja ou de morango
você e eu sempre damos um jeito
de sincronizar nossos batimentos
eu toco quatro vezes na mesa
você acelera quatro vezes o motor
família é isso mesmo : dois caubóis
fintando a gravidade e a monotonia
vai me diga se volta ou se não volta
na semana passada eu reparei
que as plantações de milho
estão começando a se expandir
me diga que isso não te seduz
foi o que ele falou isso mesmo
a plantação que se expande te seduz
ele falou que eu precisava voltar
que talvez eu devesse arrumar
minha mala largar meu emprego
arrume tudo em sua mala
não esqueça sua camisa branca
não esqueça sua flauta de osso
não esqueça não corte seu cabelo
coloque tudo nessa mala
e se tiver tempo me traz sete búzios
volte me diga que volta
repare que é a época das migrações
e que você sempre acompanhou
os colibris e os pinguins
já chega de se inscrever
nesse campeonato do desapego
você sempre perde já deveria saber
ele falou que eu deveria voltar
que no restaurante de dona Célia
estavam servindo um tipo de pão
diferente do habitual
que no parque das diversões
estavam montando um novo esquema
que na cova dos leões já não mora
ninguém absolutamente ninguém
que estão começando uma revolução
você precisa voltar foi o que ele falou
volte por favor meu amor volte pra casa
então eu fiz a mala e foi por isso que eu
voltei – eu voltei porque me chamaram.
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CONVERSA DE FIM DE TARDE
DEPOIS DE TRÊS ANOS NO EXÍLIO
Os garçons empilhando as cadeiras
você me olhando e me pedindo que
fale Por Favor Fale Mas Não Escreva
eu evitando o toque ruim dos ponteiros
do relógio que anuncia a já famosa fuga
de nossos corpos cada um para sua
ponta da cidade – se nosso amor fosse
revólver eu seria o cabo e você a mira
tal como dizia a professora Sofia Jones
é terrível a existência de duas retas
paralelas porque elas nunca se cruzam
e elas apenas se encontram no infinito
a verdade é que nunca nos interessou
a questão do infinito mas o resto
das ideias matemáticas claro que sim
eu na verdade prefiro mais de mil vezes
sua chávena de chá ficando fria sobre a mesa
enquanto você fala sobre raízes quadradas
enquanto você fala sobre ladrões de figos
enquanto você fala sobre o tropeço da baleia
subitamente eu já nem sei sobre o que você fala
porque a forma como seu dente incisivo corta
e suspende toda a beleza da cafeteria
faz com que eu novamente entenda que
pelo sétimo dia é chegada a hora do cuco
e do canto do cuco
portanto eu pego minha bicicleta
e como de costume você faz meu retrato
de cabelo todo desenhado no vento
em jeito de menino que está sempre indo embora
à mesma hora e que amanhã se tudo der certo
voltará à mesma hora para o mesmo amor
a mesma mesa a mesma explosão
com toda a certeza a mesma fuga
porque você e eu a gente é feito de matéria
escorregadia, i.e., manteiga, azeite, geleia
e espanto.
ROMA AMOR
Seu cabelo está vermelho
você falou
seu cabelo está todo iluminado
de vermelho & luz
I never wanna be
your weekend lover
respondi certeiro
rebobinando 600 dias
Você lembra da canção?
I never wanna be
your weekend lover
suas mãos desenhando a dança
no oxigênio daquele julho
e o pó se levantando
desde seus calcanhares
até a nuca de fogo
Você fazendo pouco
de tudo o que antes havia
sido chamado de baile
Purple Rain
seu cabelo está todo iluminado
de vermelho & luz
Você se lembra daquele julho?
uau você falou
sua pele cresce no vaso
da melanina
cada ano mais
E por falar em canções
imagine Maria Teresa
arrumando a casa
arrastando os móveis
na interminável busca
por vestígios de pó
quem sabe se na centésima partícula
não será possível achar
um pedacinho do genoma
do marido morto
Imagine Maria Teresa
de cabeça enfaixada
varrendo varrendo varrendo
até ficar envolta
na nuvem de pó e genomas
que acontece brilhante
no centro da sala
És faxinação, amor
Seu cabelo está todo iluminado
de partículas galácticas
sua pele brota toda negra
ameaçando a primeira visão
que o centauro ofereceu
ao menino de 13 anos
quando apontou a concha de ouro
Gli dei che a mano
nel tempo stesso odiano
você falou
é a forma como maio
bate nas janelas
se refrata na geladeira
vai bater nos azulejos
e se aloja em seus cabelos
respondi é a época
das sementes e das explosões
Amante de final de semana não
meu bem
muito menos de quinta-feira
pense nas crianças
nos avós das crianças
no olho de couro dos tios
das crianças
Veja só
nem todo mundo
tem a possibilidade de ver
entrar em sua família
um dançarino suspenso
constantemente suspenso
entre o rochedo & a flor
Pense nas crianças
e na fé de nossas crianças
Seu cabelo está todo vermelho
você falou
tudo está muito iluminado
I never wanna be
your weekend lover
eu falei
Então você abriu a porta
para interromper a refração
para acabar com a promessa
para fechar o desenho
para expulsar o centauro
para estilhaçar a concha
para calar o príncipe
para colocar o móvel no lugar
e empurrar Maria Teresa
você falou
vai embora
desça as escadas e suma
saia agora
tem alguém chegando aí
de hoje é só segunda-feira.
………………………………..
Fur
com cara de Whitman
foi assim que você pensou que eu viria ao mundo
foi assim que que você me viu na floresta
foi assim que você me viu pendurado no poste elétrico
sempre pendurado num ramo qualquer, sempre usando
o verão.
você se lembra daquele verão no Brooklin
em que ficámos perseguindo os bombeiros
durante todo o dia apenas para ver
uma vez e depois outra vez
o leque aquático que se abria sobre o fogo?
você citava poetas húngaros mas nesse tempo
eu só queria saber de inventar uma língua
que não existisse.
você se lembra do concierge que nos recebia
na pensão do Brooklin como se nunca
nos houvesse visto antes?
e não havia semana que passasse
em que nós não dormíssemos
pelo menos uma madrugada
na pensão do Brooklin.
me lembro dos dólares amassados
que eu semanalmente tirava do bolso
para pagar a Doug
eu sabia o nome de Doug
o Doug nos tratava disfarçadamente
por menina e menino.
você falava que os dólares vinham
sempre com uma forma diferente
eu adoro como você consegue tirar um coelho do bolso
eu adoro como você consegue tirar uma lâmpada do bolso
eu adoro como você consegue tirar a Beretta 92fs do bolso
foi assim que você pensou que eu ficaria
no mundo
com corpo de besta vestida
usando um lápis pousado na orelha
foi assim que você me viu
pedindo três ovos para Miss Elsie
a senhora da mercearia na Court Street
ela me deu oito ovos
porque ela sempre dava alguma coisa
ela me achava uma graça e ela não acreditava
em números ímpares. eu também não.
me lembro de você na mercearia
do Brooklyn
você costumava ficar lá atrás
brincando na secção das ferramentas.
se eu tivesse mais do que um coelho,
uma lâmpada ou uma pistola
eu teria te comprado um Black n’ Decker
eu acho que você seria a pessoa mais feliz da ilha
com um Black n’ Decker enfiado no cinto.
foi assim que você pensou que eu ficaria no mundo,
usando flores em meu cabelo negro,
sempre escondidas no emaranhado dos cachos
sempre escondidas no emaranhado do caos
de minha cabeça negra.
só você sabia quantas flores eu usava
porque agora eu já sei
que você dedicava as noites
à contagem. Deus não dorme
e você também não.
(publicado originalmente na página “Risco”, do Jornal O Globo)
§
Obituário de J. Anderson Pritt, pela mão da viúva
um pedaço de aço?
– vai lá e rouba.
a entrada da barcaça no Ganges?
– vai lá e rouba.
os dentes do jaguar japonês?
– vai lá e rouba.
corações? pele, pelo, retina?
– vai lá e rouba.
o efeito supralunar de janeiro?
– vai lá e leva.
a receita mágica do refrigerante ou
o mecanismo do relógio de corda?
– vai lá e rouba.
a hora do despertar do monge?
– vai e usa.
anel de ouro?
– todo seu.
setenta e oito braçadas do salmão
que agora já sabe onde é a foz?
– vai lá e rouba.
a canção tradicional da ilha
entalada entre meridianos?
– vai lá e rouba.
o farolim do carro armado?
– leva, para o que der e vier.
o desenho fosforescente suspenso
na parede colombiana?
– vai lá e toma.
o fantoche que João o carpinteiro
levou anos para esculpir?
– vai lá e rouba.
constelações desmanteladas
fora da orbita terrestre?
– vai lá e abusa.
a cautela previsivelmente
vencedora, loteria de Natal?
– vai lá e rouba.
pulseira de palha do discípulo
natural?
– vai lá e rouba.
Morreu sozinho e pobre
raspando farpa por farpa
a lasca presa no coração
de Dimas, o santo a quem
no céu chamaram Rakh.
§
Piscinão blue
the real reason why we never jumped into the pool was
well freddy never was a good jumper betty never was a
good sport aunt amy always talked about tea pots and
tea plates and spoons and her lost loving pomegranates
and dad kept drawing leopards on every wall of our house
please don’t ask about mom or mom’s dress made of flowers
made of silk made of every shade of desmond’s fears
little timmy sang a song about our only friend kazakalim
whose skin was dark whose blood was dim whose chest
was shiny as the wooded flute that father used to clean
every morning every midday every night and every dawn
as mother danced around the oak tree which surely did
contain a bird contain a whale contain a stack of all our tears
§
I´ll have what she´s having
nunca vou ser bom para ti
quero dizer
i talk to you for 5 hours
and then i can’t sleep
vejo a meg ryan
and then i can’t sleep
sou a cara do billy crystal
and then i can’t sleep
isto aqui não é manhattan
and then i can’t sleep
acho que o teu corte
de cabelo faz lembrar
vagalumes no sangue
do menino Emanuel
que como eu disse
era feito de veias
perfume e ossos
campo elétrico uniforme
i talk to you for 5 hours
sobre genética divina
sobre genética humana
sobre jejum e urologia
and then i can’t sleep
porque fico pensando
em Deus no filho de Deus
nos filhos de Deus
nos cachos amarelados
nas camisas de colarinho blue
no espadachim do anjo torto
na estrada para Umbaúba
na barraquinha de
frankfurters and rolls
and then i lose my glasses
and then i can’t sleep
e tenho o rosto coberto de pó
§
O acrobata
I am too late for the birth of birds
but have come just in time for the
opening of a red chocolate bar
§
§
Desmembramento de um semicírculo
Certo que nos dedicamos
a místicas peregrinações.
Exercitamos a respiração,
lutamos brigas orientais,
praticamos uma e sete vezes
a tradução do poema chileno.
Mas no fundo sabemos
que o que importa mesmo
é roçar a superfície negra
da pele do peito do anjo
que está vivo
que não dorme.
Para finalizar, boten unha ollada e escoiten con atencións os seus videopoemas, paga moito a pena.
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