Matilde Campilho: unha ollada a unha das poetas máis prometedoras de Portugal

Porxmeyre

12/07/2020

MATILDE CAMPILHO

As páxinas da Ferradura en Tránsito II, os domingos divulgan poesía brasileira de muller. Non vai ser este o caso, polo menos non estritamente, xa que Matilde Campilho (1982) concebiu o seu primeiro libro (Jóquei, 2014) no Brasil, foi “a  musa” (esta denominación non é niña,  e ademais discútoa moito porque non ten nada que ver con criterios literarios) do 13º Festival de Paraty, e alí publicou tamén os seus primeiros poemas en xornais cariocas, alén de videopoemas. Polo demais Jóquei en Portugal obtivo un grande “éxito”. Cando escribimos isto, polo que sabemos, viu catro edición nun ano, e vai pola segunda no Brasil.

(Claro que, para isto, tamén hai que saber de cantos exemplares contou cada edición…)

Dixemos “éxito” (“sucesso” en portugués) e a verdade é que este non foi/é unánime. Produciu moito efecto en en nomes como Carlito Azevedo e outros, mais tamén hai quen non dubida en dicir que a súa poesía é nihilista e tamén lin alguna opinión onde a chamaban “xuntapalabras”. E a verdade é que non me estraña. Primeiro porque Matilde é una poeta a quen o “impacto lírico” non a comprace moito . Dese xeito é máis fácil de comprender que en Jóquei a intensidade lírica non sexa uniforme, que sexa desigual e non constante. Alén de que a súa poesía (poderán comprobalo na selección que virá despois) tamén recorre con moita frecuencia ao mundo do cotián, ao descritivismo, e aí é fácil perder a intensidade lírica que se pode agradar na poesía.

Son moi comprensíbeis as críticas negativas que recibiu. E, entre as positivas eu non contaría como un mérito a temática do cotián, porque é una temática que vén desde o máis fondo dos tempos. Tamén, entre o positivo, se ten salientado a musicalidade, mesmo o “colorido” dos poemas de Matilde, ou as imaxes.

Entre as razón do seu éxito tamén hai que contar a difusión dos seus videopoemas (tamén os recollemos, no final, o que non recolleremos é, coma sempre a prosa poética), tanto porque declama moi ben como pola imaxe que transmite logrou ter moitísimos seguidores que despois, evidentemente, mercaron o libro.

Con todo, eu non teño dúbida de que Matilde Campilho pode dar nunha moi boa escritora. Actualmente vén de publicar Flecha, que é un libro de prosa breve que teño moitas ganas e curiosidade por ler e que está a recibir boas críticas. Cumpriríalle, por exemplo, ler con aproveitamento a Clarice Lispector, que para o tipo de escritora que é debe resultar lectura de moito proveito. Si, eu creo en Matilde Campliho, porque tamén escribe boa poesía, non todo é malo. Compróbeno. Dálle mellor resultado cando se decide por formatos breves, que transmiten mellor a intensidade lírica; cando precipita o ritmo tamén gaña en intensidade; ou cando se volve “máis experimental”, por exemplo usando diálogos.

Matilde Campilho, tamén chamada poeta “nómade” por ser moi afeccionada a viaxar (viviu en Madrid, en Milán, no Río de Janeiro, en varios lugares de Portugal e agora en Lisboa) tamén escribe en inglés, por exemplo.

Cando Matilde sexa quen de saír dela mesma, de verse (e a súa escrita) desde fóra e despois regresar con ganas de escribir, entón veremos a verdadeira escritora que leva dentro.

Coma sempre, estean atentos ao seu Facbook

PRÍNCIPE NO ROSEIRAL

Escute lá
isto é um poema
não fala de amor
não fala de cachecóis
azuis sobre os ombros
do cantor que suspende
os calcanhares
na berma do rochedo
Não fala do rolex
nem da bandeirola
da federação uruguaia
de esgrima
Não fala do lago drenado
na floresta americana
Não diz nada sobre
a confeitaria fedorenta
que recebe os notívagos
para o café da manhã
quando o dia já virou
Isto é um poema
não fala de comoções
na missa das sete
nem fala da percentagem
de mulheres que se espantam
com a imagem do marido
aparando a barba no ocaso
Não fala de tratores quebrados
na floresta americana
não fala da ideia de norte
na cidade dos revolucionários
Não fala de choro
não fala de virgens confusas
não fala de publicitários
de cotovelos gastos
Nem de manadas de cervos
Escute só
isto é um poema
não vai alinhar conceitos
do tipo liberdade igualdade e fé
Não vai ajeitar o cabelo
da menina que trabalha
com afinco na caixa registadora
do supermercado
Não vai melhorar
Não vai melhorar
isto é um poema
escute só
não fala de amor
não fala de santos
não fala de Deus
e nem fala do lavrador
que dedicou 38 anos
a descobrir uma visão
quase mística
do homem que canta
e atravessa
a estrada nacional 117
para chegar a casa
ou a algum lugar
próximo de casa.

***

COQUEIRAL

A saudade é um batimento que rebenta assim
vinte e oito vezes desde meu ombro tatuado
de desastre até à rosa pendurada em sua boca

E o amor, neste caso específico, é um mergulho
destemido que deriva quase sempre de uma nota
climática apenas para convergir no osso frontal
do crânio do rei da ilusão – terno é o seu rosto

Senhor, os ossinhos do mundo são de mel e ouro.

***

ATÉ AS RUÍNAS PODEMOS AMAR NESTE LUGAR

Lembro-me muito bem do tal cantor basco
que costumava celebrar a chuva no verão
Não ligava quase nada para as conspirações
que recorrentemente se faziam ouvir
debaixo das arcadas noturnas da cidade
naquela época do intermezzo lunar
Foi já depois do fascismo, um pouco antes
da democracia enfaixada em magnólias
O cantor, as arcadas, o perfume e os disparos
me ensinaram que se deve aproveitar a época
de transição para destrinçar o brilho
As revoluções sempre foram o lugar certo
para a descoberta do sossego:
talvez porque nenhuma casa é segura
talvez porque nenhum corpo é seguro
ou talvez porque depois de encarar uma arma
finalmente possa ser possível entender
as múltiplas possibilidades de uma arma.

…………………………………

Rua do Alecrim  

Uma menina desenha uma estrela de cinco pontas
a esferográfica Bic na palma da mão de outra menina.
Chove, e mesmo assim o desenho não sangra:
é preciso muito mais do que certas condições
climatéricas para que o amor escorra.

Assisto a toda a cena e penso que esta visão,
real ou inventada,
é muito pior do que a verdade a bofetadas.

……………………………………………..

O último Poema do último Príncipe

Era capaz de atravessar a cidade em bicicleta para te ver dançar.
E isso
diz muito sobre minha caixa torácica.

……………………………………………..

Desmembramento de um Semicírculo

Certo que nos dedicamos
a místicas peregrinações.
Exercitamos a respiração,
lutamos brigas orientais,
praticamos uma e sete vezes
a tradução do poema chileno.
Mas no fundo sabemos
que o que importa mesmo
é roçar a superfície negra
da pele do peito do anjo
que está vivo
que não dorme

…………………………………….

Rio de JaneiroLisboa

um dia você
adora meus óculos
adoro os teus óculos
no dia seguinte
não quero que venhas na fazenda
três dias antes
você ia adorar este lugar
você quer vir até à fazenda?
um dia eu rasgo
o tecido celular do rosto
realizo um sorriso constante
que atravessa o morro
o ponto mágico do morro
rasgão alegre que fulmina
o veio mínimo da folha
de amendoeira
e pelo feixe de luz tropiquente
vai parar na cara de João
vendedor de suco no leblon
em ricochete João grita açaí!
qualquer dia eu vou e chego

no outro dia
a cidade se aborrece
desdignificada pela
gigante roleta
que se chama medo
o urubu fica empoleirado
na trave enferrujada
daquilo que já foi suporte
ao cartaz que anunciava
o novo mundo das piscinas

fosforescentes
o pássaro suspenso
olhando a via rápida
e catando caca
debaixo da unha
temendo o gira girar
da pequena roda
que circula sorte e azar

um dia você
escreve para seus pais
falando sobre o amor
quarenta dias depois
teus pais te escrevem
falando sobre redes de pesca
e o perigo das redes de pesca
um dia você me envia uma carta
depois a outra
o rasgão explode
recordando ainda outra carta
de alguns meses antes
o postal eterno que dizia
still crazy (after all
these years)
faço voto de silêncio
mas na sacralização
horária das avenidas
eu penso que você
sua mãe e seu pai
conversam muito
sobre peixes
e que isso mantém quieta
a roleta negra
e que isso mantém aparada
a unha do urubu
e que isso faz homenagem
a João e à fruta espessa
que brilha vermelha
em cada copo de minha cidade

um dia você diz que me a****
eu a****-te
no dia seguinte
a amendoeira se expande
e floresce cinco folhas mais
nesse dia reparo
que estamos contribuindo
você e eu
para o florestamento da cidade
de duas cidades
faço voto de silêncio
mas na sacralização horária
da respiração eu penso
que apesar da sala de casino
abrigo da gigante roleta do medo
apesar dos golpes de gmt -3
apesar da fita de seda que fica
ondulando sua medida de 7 800 km
estamos dando utilidade ao amor
alargando os braços das amendoeiras
alargando os braços dos jacarandás
partindo as inúteis linhas de fronteira
e fazendo do mundo
a gigante floresta

…………………………………..

PRINCIPADO EXTINTO

Isto é um poema

fala de amor

ou do medo do amor

Fala da morte

ou do fim da amálgama

rosto voz alma e cheiro

que é a morte

Isto é um poema

tenha medo

Fala dos peregrinos

que atravessam avenidas

de sobretudo e óculos

carregando flores invisíveis

e chorando mudos

Isto aqui é um poema

fala da permanência inútil

de um coração devastado

de uma floresta devastada

de uma corrida devastada

logo depois do disparo

da arma de 40 peças

que soltou a bandeirinha

e assim mesmo se desfez

Isto é um poema

fala da aparição do inverno

fala da fuga dos albatrozes

fala do punhal sobre a mesa

e do absurdo do punhal

feito de madeira e pedra

sobre a mesa do jantar

Fala do poder da erosão

que afinal incide sobre

pele e nervo e osso e olho

Fala do desaparecimento

Fala do desaparecimento

Claro que é um poema

fala do toque de saída

no colégio de Île de France

e das 39 saias das meninas

esvoaçando sem vontade

na direção do cais de ferro

Fala do pânico do corpo

que esbarra em si mesmo

no espelho pela manhã

e do urro silencioso

que nenhum vizinho

escuta mas que ainda

assim reverbera sem dó

até a hora final

fala do vômito que advém

dos gestos repetidos

prolongados assim ad astra

até que o sono apague tudo

Fala da palavra saudade

ou da palavra terremoto

fala do olho que tudo via

deixando lentamente de ver

até mesmo a cara de Jack Steam

o porteiro da loja de discos

onde toca a canção de Chavela

Nada mais no mundo importa

Isto é que é poema

Fala do cheiro das flores

e da injustiça da existência

das flores na cidade

Fala da dor excruciante

meu bem excruciante

que faz até desejar

o fim do poema

o fim da palavra amor

que após o disparo

se espelha apenas

na palavra loucura.

………………………………………….

ASCENDENTE ESCORPIÃO

Na noite em que Billy Ray nasceu

(rua 28, cruzamento cm a 7, Nova Iorque)

não havia ninguém dedicado à contemplação dos gerânios

Havia, isso sim, o som do mundo que caía

como estalactites múltiplas

sobre as cercanias do hospital

Automóveis, alguns a 90 km/hora, outros a 30 km/hora

Bombeiros correndo para salvar o cachorro

preso na escotilha do bote atracado no Hudson

O imigrante rendendo o caixa da loja de conveniência

para roubar alguns dólares e chicletes

Aquele casal na esquina à direita, os dois chorando,

terminando com razão o arrastado namoro de cinco anos

Rosa Burns entrando em casa sem pressa nenhuma,

lançando investidas à fechadura com a chave muito mais velha

que seu rosto – tremendo, tremendo, quase desistindo

desse negócio de viver e atirar no alvo

Havia o caminhão varrendo todos os pedaços de lixo da rua

Havia o ruído das fichas de pôquer sendo lançadas

sobre a mesa verde-gasto, entre dedos e fumaça

Alguém gritando, na explosão da minúscula morte

Alguém cantando a canção sul-americana

Alguém afagando o pescoço do pombo sem dono

Alguém jogando a bola de tênis contra a parede do quarto,

repetidamente, repetidamente, repetidamente

Havia o rádio no on tocando algum barulhinho em onda média

Havia uma bruxa cozinhando azevinho & cobre na panela

do apartamento de paredes queimadas

Na noite do nascimento de Billy Ray

ao mesmo tempo que ele escutava o som gelatinoso

da placenta de onde era arrancado

e depois o som da passagem pelo canal uterino de sua mãe

e depois o som do primeiro toque em sua cabeça

e depois o som de seu próprio grito

o grito que inaugura a festa

O mundo se reunia inteiro

entre a rua 28 e a rua 7

em Nova Iorque

para rezar a oração dos pequenos gestos

o aleluia da existência ocidental :

centenas de homens vergados

fazendo vênia à metafísica suficiente

que existe nos corredores do mundo

e se extrapola até o infinito luar.



O APARECIMENTO DAS CAVEIRAS NO LENÇOL DA VIA LÁCTEA

Minha cara está envelhecendo

antes de mim

Reconheço meus deuses

e se supõe que Jonas

também tenha reconhecido a baleia

antes da grande meditação

antes do grande silêncio

ou antes de escavar

a costela de sal

Pratico mergulho-prego

desde a rocha mais alta

como é próprio da estação

E antes do salto

sempre peço a Deus

que a guerra não me seja

de todo indiferente

Porque foi assim

que me ensinou a santa

Foi assim que me segredou

a estrada de fogo

da oitava região

Há uma seleção de catástrofes

se apresentando firmes

Coisas do tipo

A figura da menina russa

que passa no parquinho

acenando 3 pêssegos

dentro da bolsa de plástico

Como se fosse um arqueiro

fazendo show-off

de suas setas douradas

no fio solar de agosto

Minha cara está marcada

por revoluções e iodo

por estilhaços de cobre

e pelo silêncio profundo

de los angelitos negros

à hora do café com açúcar

Carrego nas costas

a espada de plástico

que corta o friso nublado

entre signo e ascendente

Sim eu me aproximo

cada vez mais de meu ascendente

enquanto faço pazes com meu sol

Reconheço meus heróis

mas pelo sim pelo não

ainda guardo em meu bolso

a nota de cinco dólares

que me ofereceu o nômade

que cantava no deserto.

………………………………..

PELE DE COURO

Foi no tempo em que

(como apontou Herbert)

adormecíamos

com uma mão debaixo da cabeça

e com a outra

num aterro de planetas

Morávamos na ilha

De Saint Naumpke

no palácio de estacas e cal

construído por nós mesmos

durante os trinta dias de agosto

Lá os anos nunca eram bissextos

O pão era feito de alecrim

Os pescadores vinham

ensinar-nos os dons

E isso era tudo

o que precisávamos

e precisaríamos mais tarde

para entender a língua de fogo

que se falava nas pracinhas

Por vezes eu pintava

minha cara de amarelo

só para perceber

a consciência telúrica

que trazem consigo alguns

jaguares e cobras corais

Nesse tempo

alguém preferia o relento

à escuridão das casas

e portanto saía para o parque

armado com binóculos

de lentes-diamante

só para se deparar

constantemente

com a fórmula exata

do tempo de crescimento

das folhas de laranja-lima

“O couro de Golias

foi deixado aqui,

há cinco séculos

atrás” era o que ele dizia

no regresso ao palácio

à hora da refeição

Vinha sujo e coberto de areia

Trazendo flores velhas

em seu balde metálico

Existiam heróis daquela pátria

mas eu nunca soube quais

Havia um beato sem rosto

a quem tinham feito um altar

junto à primeira rocha de Naumpke

Sua estátua era de aço

e a todas as manhãs

alguém deixava a seus pés

uma esteira de rosmaninho.



Aquele foi o nosso tempo,

o tempo da descoberta dos aterros

e das cavernas de que são feitas

as omoplatas dos amantes.

……………………………………..


ALGUÉM ME AVISOU

Ele falou que eu precisava voltar

porque eu era sua família

falou que os passarinhos

estavam começando de novo

com aquela entoação estranha

que poderia ser vista como triste

ou como bastante maravilhosa

você precisa voltar ele falou

algumas acácias estão se votando

ao abandono ou ao desespero

e a peixaria foi atacada

por uma enorme inundação

por favor volte veja se volta

esta manhã o taxista ficou

rodando todas as estações

de rádio até achar notícia

não tem notícia de você na cidade

faça-me um favor e volte

está acontecendo uma revolução

querem retirar o primeiro-ministro

de sua cadeira empedernida

querem tocar fogo nas estradas

querem melhorar a estrutura

do sino que marca o meio-dia

na garganta de Antoninho

ande veja se volta foi o que ele falou

você é minha família é impossível

assistir à transição do inverno

para a primavera sem família perto

e como faço para comprar lollypops

se você não estiver me esperando

lá fora do lado de fora em seu carro

brincando com as rotações do motor

enquanto eu fico tamborilando meus

dedos sobre a bancada de madeira

da mercearia onde sempre compro

lollypops de laranja ou de morango

você e eu sempre damos um jeito

de sincronizar nossos batimentos

eu toco quatro vezes na mesa

você acelera quatro vezes o motor

família é isso mesmo : dois caubóis

fintando a gravidade e a monotonia

vai me diga se volta ou se não volta

na semana passada eu reparei

que as plantações de milho

estão começando a se expandir

me diga que isso não te seduz

foi o que ele falou isso mesmo

a plantação que se expande te seduz

ele falou que eu precisava voltar

que talvez eu devesse arrumar

minha mala largar meu emprego

arrume tudo em sua mala

não esqueça sua camisa branca

não esqueça sua flauta de osso

não esqueça não corte seu cabelo

coloque tudo nessa mala

e se tiver tempo me traz sete búzios

volte me diga que volta

repare que é a época das migrações

e que você sempre acompanhou

os colibris e os pinguins

já chega de se inscrever

nesse campeonato do desapego

você sempre perde já deveria saber

ele falou que eu deveria voltar

que no restaurante de dona Célia

estavam servindo um tipo de pão

diferente do habitual

que no parque das diversões

estavam montando um novo esquema

que na cova dos leões já não mora

ninguém absolutamente ninguém

que estão começando uma revolução

você precisa voltar foi o que ele falou

volte por favor meu amor volte pra casa

então eu fiz a mala e foi por isso que eu

voltei – eu voltei porque me chamaram.
…………………………………………………..

CONVERSA DE FIM DE TARDE

DEPOIS DE TRÊS ANOS NO EXÍLIO

Os garçons empilhando as cadeiras

você me olhando e me pedindo que

fale Por Favor Fale Mas Não Escreva

eu evitando o toque ruim dos ponteiros

do relógio que anuncia a já famosa fuga

de nossos corpos cada um para sua

ponta da cidade – se nosso amor fosse

revólver eu seria o cabo e você a mira

tal como dizia a professora Sofia Jones

é terrível a existência de duas retas

paralelas porque elas nunca se cruzam

e elas apenas se encontram no infinito

a verdade é que nunca nos interessou

a questão do infinito mas o resto

das ideias matemáticas claro que sim

eu na verdade prefiro mais de mil vezes

sua chávena de chá ficando fria sobre a mesa

enquanto você fala sobre raízes quadradas

enquanto você fala sobre ladrões de figos

enquanto você fala sobre o tropeço da baleia

subitamente eu já nem sei sobre o que você fala

porque a forma como seu dente incisivo corta

e suspende toda a beleza da cafeteria

faz com que eu novamente entenda que

pelo sétimo dia é chegada a hora do cuco

e do canto do cuco

portanto eu pego minha bicicleta

e como de costume você faz meu retrato

de cabelo todo desenhado no vento

em jeito de menino que está sempre indo embora

à mesma hora e que amanhã se tudo der certo

voltará à mesma hora para o mesmo amor

a mesma mesa a mesma explosão

com toda a certeza a mesma fuga

porque você e eu a gente é feito de matéria

escorregadia, i.e., manteiga, azeite, geleia

e espanto.


ROMA AMOR

Seu cabelo está vermelho

você falou

seu cabelo está todo iluminado

de vermelho & luz

I never wanna be

your weekend lover

respondi certeiro

rebobinando 600 dias

Você lembra da canção?

I never wanna be

your weekend lover

suas mãos desenhando a dança

no oxigênio daquele julho

e o pó se levantando

desde seus calcanhares

até a nuca de fogo

Você fazendo pouco

de tudo o que antes havia

sido chamado de baile

Purple Rain

seu cabelo está todo iluminado

de vermelho & luz

Você se lembra daquele julho?

uau você falou

sua pele cresce no vaso

da melanina

cada ano mais

E por falar em canções

imagine Maria Teresa

arrumando a casa

arrastando os móveis

na interminável busca

por vestígios de pó

quem sabe se na centésima partícula

não será possível achar

um pedacinho do genoma

do marido morto

Imagine Maria Teresa

de cabeça enfaixada

varrendo varrendo varrendo

até ficar envolta

na nuvem de pó e genomas

que acontece brilhante

no centro da sala

És faxinação, amor

Seu cabelo está todo iluminado

de partículas galácticas

sua pele brota toda negra

ameaçando a primeira visão

que o centauro ofereceu

ao menino de 13 anos

quando apontou a concha de ouro

Gli dei che a mano

nel tempo stesso odiano

você falou

é a forma como maio

bate nas janelas

se refrata na geladeira

vai bater nos azulejos

e se aloja em seus cabelos

respondi é a época

das sementes e das explosões

Amante de final de semana não

meu bem

muito menos de quinta-feira

pense nas crianças

nos avós das crianças

no olho de couro dos tios

das crianças

Veja só

nem todo mundo

tem a possibilidade de ver

entrar em sua família

um dançarino suspenso

constantemente suspenso

entre o rochedo & a flor

Pense nas crianças

e na fé de nossas crianças

Seu cabelo está todo vermelho

você falou

tudo está muito iluminado

I never wanna be

your weekend lover

eu falei

Então você abriu a porta

para interromper a refração

para acabar com a promessa

para fechar o desenho

para expulsar o centauro

para estilhaçar a concha

para calar o príncipe

para colocar o móvel no lugar

e empurrar Maria Teresa

você falou

vai embora

desça as escadas e suma

saia agora

tem alguém chegando aí

de hoje é só segunda-feira.

………………………………..

Fur

                                           com cara de Whitman
foi assim que você pensou que eu viria ao mundo
foi assim que que você me viu na floresta
foi assim que você me viu pendurado no poste elétrico
sempre pendurado num ramo qualquer, sempre usando
o verão.
você se lembra daquele verão no Brooklin
em que ficámos perseguindo os bombeiros
durante todo o dia apenas para ver
uma vez e depois outra vez
o leque aquático que se abria sobre o fogo?
você citava poetas húngaros mas nesse tempo
eu só queria saber de inventar uma língua
que não existisse.
você se lembra do concierge que nos recebia
na pensão do Brooklin como se nunca
nos houvesse visto antes?
e não havia semana que passasse
em que nós não dormíssemos
pelo menos uma madrugada
na pensão do Brooklin.
me lembro dos dólares amassados
que eu semanalmente tirava do bolso
para pagar a Doug
eu sabia o nome de Doug
o Doug nos tratava disfarçadamente
por menina e menino.
você falava que os dólares vinham
sempre com uma forma diferente
eu adoro como você consegue tirar um coelho do bolso
eu adoro como você consegue tirar uma lâmpada do bolso
eu adoro como você consegue tirar a Beretta 92fs do bolso

foi assim que você pensou que eu ficaria
no mundo
com corpo de besta vestida
usando um lápis pousado na orelha

foi assim que você me viu
pedindo três ovos para Miss Elsie
a senhora da mercearia na Court Street
ela me deu oito ovos
porque ela sempre dava alguma coisa
ela me achava uma graça e ela não acreditava
em números ímpares. eu também não.
me lembro de você na mercearia
do Brooklyn

você costumava ficar lá atrás
brincando na secção das ferramentas.
se eu tivesse mais do que um coelho,
uma lâmpada ou uma pistola
eu teria te comprado um Black n’ Decker
eu acho que você seria a pessoa mais feliz da ilha
com um Black n’ Decker enfiado no cinto.

foi assim que você pensou que eu ficaria no mundo,
usando flores em meu cabelo negro,
sempre escondidas no emaranhado dos cachos
sempre escondidas no emaranhado do caos
de minha cabeça negra.

só você sabia quantas flores eu usava
porque agora eu já sei
que você dedicava as noites
à contagem. Deus não dorme
e você também não.

(publicado originalmente na página “Risco”, do Jornal O Globo)

§

Obituário de J. Anderson Pritt, pela mão da viúva

um pedaço de aço?
– vai lá e rouba.
a entrada da barcaça no Ganges?
– vai lá e rouba.
os dentes do jaguar japonês?
– vai lá e rouba.
corações? pele, pelo, retina?
– vai lá e rouba.
o efeito supralunar de janeiro?
– vai lá e leva.
a receita mágica do refrigerante ou
o mecanismo do relógio de corda?
– vai lá e rouba.
a hora do despertar do monge?
– vai e usa.
anel de ouro?
– todo seu.
setenta e oito braçadas do salmão
que agora já sabe onde é a foz?
– vai lá e rouba.
a canção tradicional da ilha
entalada entre meridianos?
– vai lá e rouba.
o farolim do carro armado?
– leva, para o que der e vier.
o desenho fosforescente suspenso
na parede colombiana?
– vai lá e toma.
o fantoche que João o carpinteiro
levou anos para esculpir?
– vai lá e rouba.
constelações desmanteladas
fora da orbita terrestre?
– vai lá e abusa.
a cautela previsivelmente
vencedora, loteria de Natal?
– vai lá e rouba.
pulseira de palha do discípulo
natural?
– vai lá e rouba.

Morreu sozinho e pobre
raspando farpa por farpa
a lasca presa no coração
de Dimas, o santo a quem
no céu chamaram Rakh.

§

Piscinão blue

the real reason why we never jumped into the pool was
well freddy never was a good jumper betty never was a
good sport aunt amy always talked about tea pots and
tea plates and spoons and her lost loving pomegranates
and dad kept drawing leopards on every wall of our house
please don’t ask about mom or mom’s dress made of flowers
made of silk made of every shade of desmond’s fears
little timmy sang a song about our only friend kazakalim
whose skin was dark whose blood was dim whose chest
was shiny as the wooded flute that father used to clean
every morning every midday every night and every dawn
as mother danced around the oak tree which surely did
contain a bird contain a whale contain a stack of all our tears

§

I´ll have what she´s having

nunca vou ser bom para ti
quero dizer
i talk to you for 5 hours
and then i can’t sleep
vejo a meg ryan
and then i can’t sleep
sou a cara do billy crystal
and then i can’t sleep
isto aqui não é manhattan
and then i can’t sleep
acho que o teu corte
de cabelo faz lembrar
vagalumes no sangue
do menino Emanuel
que como eu disse
era feito de veias
perfume e ossos
campo elétrico uniforme
i talk to you for 5 hours
sobre genética divina
sobre genética humana
sobre jejum e urologia
and then i can’t sleep
porque fico pensando
em Deus no filho de Deus
nos filhos de Deus
nos cachos amarelados
nas camisas de colarinho blue
no espadachim do anjo torto
na estrada para Umbaúba
na barraquinha de
frankfurters and rolls
and then i lose my glasses
and then i can’t sleep
e tenho o rosto coberto de pó

§

O acrobata

I am too late for the birth of birds
but have come just in time for the
opening of a red chocolate bar

§


§

Desmembramento de um semicírculo

Certo que nos dedicamos
a místicas peregrinações.
Exercitamos a respiração,
lutamos brigas orientais,
praticamos uma e sete vezes
a tradução do poema chileno.
Mas no fundo sabemos
que o que importa mesmo
é roçar a superfície negra
da pele do peito do anjo
que está vivo
que não dorme.

Para finalizar, boten unha ollada e escoiten con atencións os seus videopoemas, paga moito a pena.
.

Porxmeyre

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