Prometo non repetir argumentario: por moito que as condicións para unha poeta negra non mudaran en nada, hai cousas que temos que admitir como inherentes á condición negra da poeta, mais que tampoco deben quedar no esquezo porque son condicionantes absolutos á hora de escribir. Lembrarei, pois, mais só lembrarei, a carencia de liberdade dunhas autorías condenadas a escribir e reivindicar tanto sobre a súa condiicón de persoas de pel negra, como da súa condicón de mulleres de pel negra plenamente conscientes do que iso significa. Lembrarei, mais só lembrarei as “escrivivencias”, que diría Conceição Evaristo, esa afortunadísima expresión. Mentres non haxa otras condicións sociais e políticas, esta é a situación de partida para calquera autoría de pel negra. É dicir, o corpo é territorio político de disputa.
E feminista, naturalmente, que tampoco hai que esquecer.
Mais hoxe queremos salietar que a de Zainne Lima da Silva é unha das voces poéticas máis potentes e convencidas que a actualidade brasileira nos depara. De feito, tanto Pedra sobre pedra como Canções para desacordar os homens (que nace en formato e-book) son títulos de 2020. Zainne naceu en 1994, en Taboão da Serra, poboación (auténtica cidade) da perifeira paulista onde, se os nosos datos non erran, a poboación branca supón máis do 60% mentres a xente de pel negra non chega ao 9%. Este dato debería ser intrascendente, mais nun país tan racista como o Brasil resulta decisivo, de maneira que estamos a falar dunha poeta consciente da súa condición de muller negra e da periferia.
Hai razón para explicar o impacto e a esperanza que se desprenden da obra desta novísima poeta, negra e feminista, brasileira. Eu voulles ofrecer as miñas. E quero comezar porque a súa poesía reflicte un intenso traballo formal previo. A “inspiración”, “eclosión” ou “revelación” do poema pode ser nun instante, indeterminado ou preciso, do momento ou que volve á memoria, mais é poeta moi esixente, moi auto-esixente, á hora de elaborar os textos. Iso é algo que se percibe moito na lectura dos seus poemas.
Como é muller e poeta moi nova, é de agardar evolución tanto formal como temática co paso do tempo. Se cadra máis formal que temática, se temos en conta o inicio destas liñas. En todo caso, comprobarán que en Zainne hai unha excelente poeta non só no presente senón que que representa unha moi agradábel e consistente esperanza de futuro. Un futuro esplendoroso que xa comezamos a disfrutar.
Da selecta que a continuación lles presentarei, gustaría que se fixasen en certos motivos temáticos nela presentes, como a noción de “inferno”, como a noción de “odio” ou como a nocións de “silencio” ou “berro” (implícito na gorxa) ademais do valor da palabra neste contexto temático. É unha maneira de tomar posición na vida, de significarse, porque a vida é só @s que a viven e toman partido, non para espectadores
Para remtar esta breve presentación quero convidal@s á lectura do seu Facebook onde atoparán máis poesía dela. De feito, un dos poemas da selecta provén de aí.
Imos coa súa poesía.
(En Cabine Cultural)
Infernópolis
queria escrever um poema
a calcular quanto pesa a menos
um corpo pisoteado dentro do caixão
o poema ficou intragável
e ao invés de terminá-lo
chorei as lágrimas do absurdo:
amargas, mudas e irrecuperáveis
diante do ser negro e favelado no Brasil
amanhã tampouco o poema
desceria goela abaixo
nem depois de amanhã –
no próximo dia de qualquer dia
o luto coletivo se renova
ainda mais insuportável.
…
Falar do ódio
este, que eu esquento com a comida
e ponho na língua a ponto de queimar
ódio que compõe meu corpo como água e sangue
falar do ódio como fala-se do amor
da filosofia, da religião, da transcendência
falar dos livros, poemas e teoremas
construídos essencialmente a partir do ódio
falar do ódio que cresce e lota a minha cabeça
que me dá o lampejo de vida após a crise suicida
falar do ódio que me molha para a masturbação
do que me leva ao sentido legítimo da vingança
falar do ódio, essa música muda
essa linda música muda
humanizar o ódio
usá-lo como ferramenta para a revolta
e para revolução.
…
Astral
meu signo trabalhador, exausto
escolhe a dramática-expressiva
a partir de ruínas
ergue alguma construção
monumental
apenas com as pontas dos dedos
a sua inimiga, embaciada
confabula com bulas e cartelas
reclusa-silenciosa
arranca as portas de toda a casa
convida o suicídio
toda vestida de amarelo
às tempestades dos copos
venceu o trabalhador
até quando mais um dia?
…
Borges
amo tua cama hasta o último pó
lembro do lodo preso nas paredes de teu alugado
líquen; musgo, verde como grama de desenho de criança
verde como a planta que eu crio para você
às escuras
sonho com teus vizinhos, arroz doce
não vejo teu rosto
lembro do lodo preso dentro de mim
falta de visitação
não me acomodo no tempo
desde que teu ser me adentrou
eu sou um velho alemão sentindo frio sentado na estação de trem sem saber que destino tomar nem o caminho de volta para casa.
…
[sem título]
lhe desejaria um cancro se ser amado por mim não fosse mais terrível que isso
este peso da minha caneta
que se não mata
rouba e destrói
eu não sou o diabo
ao contrário, te sou deus
e te faço barro de ânimo
com papel e tinta
quê pode ser pior a um homem
que a eternidade da palavra?
……………………………………..
(En Escrita Droide)
Carne de cabra(l)
escrever é minha faca só lâmina
me corta profundo
não sangro
não sei se dói
o corte
a imagem perfurada seca
ou o espelho que a faca é
me mostra o poema
maturado andando sozinho
encima de mim.
A duplicada
eu
visto permanentemente uma máscara
de pele mais escura e resistente
com a identidade de zainne lima da silva
tenho duas faces de moeda sem valor
tenho duas de mim
uma tenta a vida no tempo agora
a outra inventa o momento seguinte
e o anterior
não me acomodo no tempo
estou entre desver e transver a poesia
transcrever fauna e flora para a língua universal
e ser uma mini deusa negra
como minha avó e minha neta
que não existem
mas que estão prontas na supermassa da oleira
que sou toda vez que escrevo
ou quando digo não
para um verbo de estado.
[sem título
escrever o poema
como se aria uma panela velha
até que de seu ferro
se extraia um espelho
em que se veja no branco do olho
a lágrima dele escorrida
no dia anterior.
………………….
(En A Casa de Vidro)
Uma canção de puro ódio que
Jamais será cantada mas que
Certamente deveria
o mito da mulher que sou
repousa no absurdo
de achar que não tem olhos
nem destino a seu caminho
que as pirâmides egípcias eram
imaginárias
que não há sensibilidade em seu corpo
nem coração em seu peito
de achar que há algum edifício a pular
depois ainda de um suicídio.
II
eu não perdôo as memórias racistas
projetadas para mim
nem as dissonâncias irresolúveis
encrostadas em minha alma.
III
de confundirem certa noção de justiça
com vingança
pegaram o pretinho menor de idade
furtando quatro barras de chocolate
pela terceira vez, no Ricoy
amordaçaram o pretinho
chicotearam suas costas
pela terceira vez, torturaram
o pretinho, quase nu
os homens não confundem nada
– na verdade, há uma alva definição
no desejo quase sexual de ser
um senhor de engenho
:
idiotas racistas sentem-se deuses com
armas nas mãos
*
menstruação de aniversário
seco-me
do papel, uma gota de sangue
cria rastro em minha mão
miro a víscera nas linhas da palma
descubro, aterrorizada
de todas as mulheres de minha casa
sou a mais viva
*
ovulação
o fio que me invade
e me arremata no cio é
puro cerol.
…………………………
(Na Acrobata)
agradecimento
choro quando ovulo
todo mês fecundar
filho de ninguém
décimo quarto dia
enlutada, gozar
em cima de dedos tristes.
Hija de Yemayá
a Annandra Lís
tu vem me arrastando como onda brava
achando que o amor é isso, um joelho ralado
uma queda engraçada pra gringo rir
tu vem me arrastando
e nem liga se eu estou conseguindo respirar
se perdi meu biquíni no tombo
se engoli ou não a água suja do mar usado
se terei virose por quinze dias seguidos
tu vem me arrastando
com essa voz de sereia amuada
eu nem quero ir, já lhe disse
que o rio teme o desembocar
mas tu mostra as asas, os dentes, os seios
tu me quer, eu te quero (apesar de não querer)
tu vem me arrastando como quem deseja que me afogue
como quem satisfaz as próprias vontades, irredutível
tu vem me arrastando como a morte no oceano
imensa, linda, límpida, viva e feroz
tu me ama, eu te amo
(ainda sem saber o que é amar).
Reentrâncias
amar as mãos e os pés do homem negro
saber quantas de suas canelas
fugiram de polícias milícias
quantas vezes seus ombros caíram
em mãos atrás da cabeça
amar suas impressões digitais
debaixo dos calos de trabalho
e música
amar suas cicatrizes
de skate cerol e bala perdida
amar seu sobrenome
sem pai
amar seu corpo estirado no chão
vivo ou morto (sempre morto)
amar seus traumas suas neuroses
amar suas contradições
amar sua ejaculação precoce
sua ejaculação retardada
sua impotência
diante dos absurdos da vida
amar as canções que ele ama
amar os poemas que ele odeia
escrever sobre sua percepção de mundo
respeitar seu silêncio
exercitar sua paciência
despertar sua delicadeza
perceber a minúcia
atrás da couraça protetora
saber arrancá-lo à força de seu pesadelo
pôr-se à beira do precipício
que é amar um homem negro
ser gentil na queda
esquecer a colisão.
……………………….
A educação pela pedra ou A educação pela noite
de madrugada eu trabalho
eu e os pedreiros construindo
em frente à minha casa
erguemos obras de tijolo e cimento
a cada rabisco da caneta
ajunta-se um reboco de parede
eu também sou arquiteta popular
com algumas pedras noturnas ergo
a minha poesia.
…………………………
(Na Pixé)
II_ANATÔMICO EVOLUTIVO
ver-como
o corpo se comporta quando nu
onde dobra onde alonga onde enrijece
as cores que o pintam os pelos os poros
as ranhuras estrias celulites
os caroços as pintas as cicatrizes
de catapora de vacina até de violência doméstica
onde é úmido onde é seco onde é encharcado
e por que
o sangue a pele a unha o cabelo o cílio a sobrancelha
fungos bactérias inflamações putrefações obturações
sons de espirro tosse riso choro engasgo gozo
contrações expulsivas
corte e costura
ver-como
o corpo se comporta quando nu
ao nascer
ver-como
o corpo se comporta quando nu
ao transar
ver-como
o corpo se comporta quando nu
ao morrer
ver-como
o corpo deixa de se comportar
quando pó
III_MEMÓRIAS DO CÁRCERE
amei homens
cujo prazer era gozar o silêncio
principalmente quando deviam explicações
para eles silenciar era uma escolha
um repouso para quem o direito do dizer
esteve sempre e sempre garantido
eu descobri o poder da garganta
para quê calar se estive muda nos corpos
de minhas tetra tatara bisa avó
se estive quieta em Eva e em Maria
se meu único som legítimo fora o gemido
de choro dentro de um navio negreiro
o silêncio para mim é cárcere
não fico quieta não ficarei
gritarei cada vez mais alto em prateleiras públicas
forrando os livros com os meus nervos
de aço sim mas humanizados e raivosos
furiosos desvairados excelentemente polidos
no uso poético de cada palavra minha
se um dia me calar será em fogueira de papéis
censura aniquilação do pensamento da expressão
ainda depois de morta
estarei cá em meus livros a falar
sobre memórias de libertação.
……………………..
(Na Germina)
…………………
(No Face de Lendo Mulheres Negras)
tenho um par de homens
que se propõem a deitar comigo
(se não se propõem, os seduzo)
e que depois fogem de meu perigo
de exaustos ou de assustados.
os escolho pela cor do corpo
por vezes, pela textura do cabelo
para conformar este curso, que é recôncavo:
inclinam-se em negras cores
em cima, atrás, embaixo de meu sexo
gritam e gemem como fêmeas
em redes de pesca, queimando nas areias
enfim, se desfazem no oposto –
num ápice, como leite derramado
profundo e caudaloso lago
(ou, quem sabe, alegre banho de chuva)
margeando o mais próprio e mágico em mim:
o sussurro do atrito em meu lado de dentro.
………………………….
Do seu Face
CASA AMARELA
este poema é uma palafita
com quintal de árvores que dão flor
madeira brilhante de peroba
tanque de amolar peixeira de baiano
aqui, nunca é baixa a maré
e a casa está sempre alagada
cadeiras de pé para cima
todas as portas de contenção
uma vela que nunca se apaga
para Santa Luzia dos olhos
que a totalidade veem
o leitor, que desenfreadamente entra
neste terreiro sem terra
que molhe só as pontinhas dos pés
nesta água tem cobra enfeitiçada
e não vai querer se encantar
ficar sempre preso neste alagamento
que é a minha poesia
ouve, leitor: apenas as pontas dos pés.