Jennyfer Nascimento: poesía periférica e da indignación

Porxmeyre

18/10/2020

Todo o mundo coñece a poesía como unha forma de beleza materializada con palabras. Mais, se a beleza fica niso, en só beleza non pasa de algo anecdótico sen maior trascendencia. Quere isto dicir que, se na poesía non hai ética, de pouco serve. Cando a poesía nace da conmoción e conmove a quen le, entón é cando a poesía é arte verdadeiramente, cando é útil. Cando nun país como o Brasil @ poeta olla o racismo existente na sociedade, o desprezo polo “negro” ou “preto”, olla e cala…máis que poeta é un/unha covarde ou colaboracionista que se esconde detrás das mil máscaras do silencio. Cando @ poeta ve e comproba a minusvaloración da muller, os abusos de que é obxecto a muller…@poeta é unha/un covarde colaboracionista que se esconde detrás das mil máscaras do silencio.

Desde aquí, desde este lado do Atántico, eu non teño dúbidas nin do racismo nin do machismo no Brasil. É máis: nomes como o de Conceição Evaristo ou Miriam Alves tiveron que denunciar racismo mesmo na Paraty, a festa da poesía máis célebre no Brasil, o que é ben grave e ben sintomático do branqueamento da sociedade brasileira na tentativa de eliminar a cultura negra. Neste sentido teño cada vez mási certo que no Brasil habería que falar de culturas máis que de cultura. Se mesmo quixeron branquear o mesmísimo Machado de Assis!

Neste contexto, o nome de Jennyfer Nascimento é todo un exemplo de loita. De loita contra o racismo, de afirmación nos valores da negritude. De loita contra o machismo, de afirmación nos valores da muller. De  loita e reivindicación. Son consciente de que na poesía de Jennyfer hai máis temas, son moi consciente diso, mais quero tematizar a loita contra o racismo e  loita contra o machismo como temas preferentes e bandeira da poesía de Jennyfer Nascimento. Porque me parece o máis xusto e eu non quero esconderme detrás das mil máscaras do silencio. E porque cada vez vexo máis claro que na Galiza, os galegofalantes!, temos a mesma loita que no Brasil existe contra o racismo, a mesma loita contra a minusvalorización interesada. E o mesmo se pode, e o mesmo de debe dicir no relativo ao machismo.

De Jennyfer Nascimento só coñezo Terra fértil (Editora Mijba ,2014. O Mijba é un colectivo de mulheres negras fundado por Elizandra Souza), e as súa colaboración na antoloxía Pretextos das mulheres negras (2013). É nativa de Paulista (Pernambuco), naceu en 1984 e, segundo ela mesma dixo, a súa poesía nace do hip-hop, do rap e dos saraus. E a súa poesía tamén se identifica coa poesía ou literatura periférica. Non só porque as autoras desta literatura moren na periféria de São Paulo, senón tamén, en palabras de Sérgio Vaz, porque: “ que nasce em espaços violentos, do racismo, da precariedade da saúde e da educação, da orfandade, de uma condição social desprivilegiada.

A de Jennyfer Nascimento, en resumidas contas, é unha poética da periferia (imposíbel non lembrar a excelente e favelaria novela, romance en portugués, de Iolanda Zúñiga así tiulada: Periferia, Ediciósn Xerais, 2010), da periferia e da indignación.

Sendo só un título, hai que dicir que é un poemario ben extenso.

Sendo só un título, é suficiente para considerar a Jennifer Nascimento como unha das voces máis potentes da poesía brasileira actual, non só da poesía negra.

Se até agora falamos sobre todo de ética poética, isto non quere dicir que formalmente a súa poesía non teña moito mérito. Porque o ten. Só con ler os poemas que presentaremos na selecta habitual é fácil comprobalo.

Antes de rematar esta presentación, non quero deixar de indicar outro tema común entre a poesía negra de muller (especialmente) feminista…e a poesía/literatura galega feminsta: o corpo. A necesidade de reificar o propio corpo, a necsidade de resignicar o propio corpo da muller lonxe da concepción masculina.

Non deixen de visitra o seu Facebook porque nel hai moita poesía (na selecta hai un poema que de alí provén) e é unha boa maneira de estar informad@s da loita contra o machismo e racismo.

E, agora, disfruten e indígnense!

(En Blogueiras negras)

ANTÍTESE

Pediram um corpo escultural
Eu não tinha.

Quiseram uma mulher ignorante
eu já tinha lido o suficiente pra me proteger.

Sugeriram que não opinasse em assuntos de homem
Eu nunca consenti em calar.

Disseram que eu fosse esposa
Eu não quis casar.

Discursaram que as mulheres são frágeis
Eu não tive tempo de exercitar fragilidades.

Orientaram que não freqüentasse bares
Eu não pude negar as esquinas.

Quiseram controlar meu jeito de vestir e falar
Eu não vi sentido em deixar de seguir minhas vontades.

Apostaram que eu teria um subemprego
Eu vislumbrei ir mais distante.

Transaram comigo e depois fingiram não me conhecer
Eu aprendi a ignorar os imbecis.

Disseram que eu não amamentasse para o peito não cair
Eu amamentei até cair.

Submeteram meu corpo e meu psicológico à violência
Eu me juntei a outras como eu para superar.

Compraram vaidades para que eu me adequasse
Eu envaideci aprendendo palavras de ordem na luta.

Exigiram fidelidade e submissão
Eu rompi por amor próprio.

Cagaram mil e uma regras de conduta
Eu mandei pra puta que pariu
E sorri, feliz.

DESENSINAMENTOS

Estão a moldar nossos pensamentos,

A roubar nossa autoestima.

Nos ensinaram um andar cabisbaixo.

Corpos curvados encaram o chão

Como se olhar o céu ou o front

Não fosse algo permitido para negras

Lavadeiras, cozinheiras, professoras,

Balconistas, cabeleireiras e universitárias

Como nós.

Nos ensinaram que somos feias.

As capas de revistas não nos querem.

Os garotos nas escolas não nos querem.

Os cargos executivos não nos querem.

Os maridos não nos querem.

Reparem bem no que dizem.

Está tudo assim desproporcional,

Grande demais ou escuro demais.

Pelo menos ajeitem esses cabelos.

Ensinaram a moldar nossos corpos,

A tirar nossa expressividade.

Nos ensinaram coreografias pré-moldadas,

Em que o balanço e a espontaneidade não cabem,

E assim, pouco a pouco deixamos de dançar.

Somos corpos reprimidos que pairam

Por medo de errar a coreografia,

De errar a medida, de errar…

Corpos doentes.

Corpos endurecidos.

Corpos infelizes.

Estão a moldar nossos sentimentos,

A negligenciar nosso sentir.

Nos ensinaram a ser fortes.

Aguentar o sol forte queimando na cara

Ao carregar a lata d´água na cabeça,

A aceitar humilhação da patroa,

A parir sem gritar ou gemer,

A criar os filhos sozinhas.

A esconder o choro de solidão,

A não pedir ajuda a ninguém,

A esquecer de si mesma.

Nos ensinaram a calar.

A não dizer o que sentimos, nem o que pensamos.

As coisas são como são e ponto. Tá entendido?!

Na prática ninguém costuma mesmo

Dar ouvidos a uma mulher, a uma negra.

Que diferença faz o que você disser?

Quantas vezes adiantou falar?

Eles sempre dirão

“Você só fica bonitinha assim, calada”

Aprender a calar antes que te calem.

(…)

Então um dia

Outras mulheres negras

Das mesmas fileiras que nós

Nos ensinaram que tudo que tínhamos aprendido

Era uma grande farsa.

Foi quando aprendemos a lutar.

…………………………………..

(En Literafro)

Douglas, Amarildo e Claudia

DOUGLAS poderia estar em um cursinho pré-vestibular gratuito
Já que a escola não o preparou para as universidades públicas
E, quem sabe, com dedicação e esforço no ano que vem seria ele
O próximo aluno negro a entrar em Geografia na UNESP
De mudança para Presidente Prudente
Levando na bagagem os sonhos colhidos na Zona Norte.
Não deu tempo.

Só conseguiu balbuciar:
Por que o senhor atirou em mim?

AMARILDO poderia estar contando historias para seus filhos
Que nem só de dourado vive o pescador e que há peixes grandes
Nesse mar imenso desse tal de Rio de Janeiro, fevereiro e março…
E quem sabe estivesse de emprego novo, salário digno
Sem hipocrisia de um patrão pagar R$300 ao mês para um pai de 6 filhos.
Mas naquele dia era pra ser só divertimento
Ver o jogo do Vasco X Flamengo.
Nunca mais voltou
O desaparecido.

Do morro aos quatro cantos do mundo:
Onde está o Amarildo?

CLAUDIA poderia estar preparando um bolo com cobertura de chocolate
Para o aniversário de sua sobrinha mais nova.
Quem sabe naquele domingo estivesse ouvindo
Paulinho da Viola ou Jorge Bem para se distrair
Sem parar no peso dos serviços gerais
Que desde a escravidão pesa para
Pessoas de sua cor.
Mas não, foi apenas comprar o pão.
De troco, a carne exposta ao chão.

Deu no jornal, virou notícia.
Mas ninguém se comove
Quando gente preta morre
Pelas mãos da polícia
Ninguém.

Isto não é um poema.

                                                                                    (Terra fértil, p. 108)

Dor amor

O primeiro homem negro que amei
Não sabia que era negro
Mas a polícia sabia bem.
Tirando os beijos trocados na porta da escola
Demonstração de afeto, coisa rara.
Revolta era o sentimento mais comum
A maneira de dividir a dor
De dividir a cor.

O segundo homem negro que amei
Foi doce, amoroso e companheiro
Tínhamos o hip-hop como pano de fundo
Dançamos, vivemos à rua, o mundo!
Não fosse o ciúme: amor = prisão.
Numa crise me chamou de vagabunda
Me empurrou do escadão.
Chorou arrependido, mas não deu
Não deu mais para o amor.

O terceiro homem negro que amei
Faceiro, moleque de terreiro
Por seu encanto caí no samba de roda.
A roda rodou, gira girou.
Tivemos um filho, negro menino.
As dificuldades da convivência
Transformaram o sonho de amor
Em traições, mentiras e abandono.
Quando sentiu me perder foi tarde
Era ele quem tinha se perdido

O quarto homem negro que amei
Já havia amado muitas mulheres
Mas nunca se deparado com um negro amor.
Eu o amei com gosto de liberdade
Um jeito que ele nunca entendeu.
Este, se me amou foi em segredo
Na ferocidade do sexo
Encoberto por lençóis floridos
Em agudos gemidos.

O quinto homem negro que amei
Era poeta, sensibilidade aflorada.
Seus crespos emaranhados aos meus
Duraram uma primavera, assistida da janela.
Um dia o poeta, quis por bem fazer discurso:
“Mulheres negras são difíceis, cheias de complexo”
Era a moça branca com quem ia se casar
Sugeriu que eu fosse sua amante.
Chorei muito, não de amor.

Todos os homens que amei são negros.

Não me julgue o coração
Eu só quero amar.
Apenas.

                              (Terra fértil, p. 46)

Raízes

Chão de terra
Terra preta
Preta é a tua pele.
Olhares dispersos
Olhares cruzados
Sonhos roubados

Chão de terra
Terra preta
Quebraram-se as correntes.
Nunca houve correntes
A vontade era tanta
Não conseguiu conter.

Chão de terra
Terra preta
Amanhece.
Exalam cheiros íntimos,
Pelas fretas contrastam os tons
Quero denegrir.

Chão de terra
Terra Preta
Fértil.

Cresce uma raiz grossa
Brota um desejo único
Sentir seu gosto negro

Chão de terra
Terra preta
Uma descendência inteira
Na tua pele garras, marcas
Um território livre
Sob dominação.

Chão de terra
Terra preta
Temperatura não cessa.
Mudança de estado
De sólido pra líquido.
Escorre a seiva.

Chão de terra
Terra preta
Arada.
Negrecis
Negrume
Negredo.

Nosso segredo.

               (Terra fértil, p. 24)

Samba jazz

Ele gosta de jazz
Frequenta cafés e lugares cult.
Já leu Morin, Bourdieu e Oswald
Fã de Glauber como Deus e o Diabo.

A Terra em Transa, transe.

De tão existencialista
Divagava horas sobre
O tal sentido da vida.

Ela não.
Só queria saber de viver.

Criada no samba
No ruído da cuíca.
Frequentava bares, biroscas, botequins.
Além das receitas dos remédios de sua mãe
Gostava de ler muros e olhos de pessoas.

Fã mesmo
Só de histórias
De Dona Biu benzedeira
Sua bisavó.

Ele, nascido e criado em SP.
Império acinzentado e sem amor
Até que se prove o contrário.

Ela, nascida e criada em SP.
Na multidão de dez milhões
Aprendeu a se aquecer.

Havia rumores de que o mundo fosse acabar.

Ele dotado de “razão” que era
Não deu a mínima.
Rumou para o centro da cidade
Para ver os Expressionistas.

Ela apressou-se
Queria se arrumar, estar bonita.
Era tempo de festejar
Um possível recomeço.

Aconteceu do salto fino de menina do samba
Trombar na camisa desbotada do cara do jazz
Na General Jardim
Assim.

Ela primeiro leu seus olhos
E no muro a escrita:
-Mais amor, por favor!

Ela não teve o que teorizar.
Diante dela sentiu-se parte
Do Cinema Novo.

Nasceu ali o samba jazz.

Agora o mundo já podia se acabar
Ou não.

                                         (Terra fértil, p. 14) 

Identidade

Cansei de ser uma foto 3×4
Acompanhada por uma sequência de dígitos.

Cansei de ser número
No RG, CPF, Título de Eleitor
Passaporte, Carteira de Trabalho.
A burocracia nunca me enxerga como gente.

 
Eles não sabem da cor azul
Que fui a Bahia e vi Dona Canô na festa de Reis
Que choro quando leio a Cor PúrpuraNem que passo as tardes ouvindo Benito de Paula.

Cansei de ser número
Engrossando as estatísticas
De mãe solteira sem superior completo
De mulher negra que sofreu violência doméstica
Que agora sou parte dos 56% de classe C
Segundo a revista Exame.
Vexame.

As estatísticas não sabem, por isso não divulgam
Ando triste, confusa e ruim da memória.

E no posto de saúde.
Onde sou apenas mais um número no SUS
Não tem psicológicos para sequer uma consulta.
Desconfio que psicológicos devam atender
Apenas números inteiros e não os fracionados como eu.

Preocupa-me
No futuro, tudo ficará mais simples
Seremos como um código de barras
É só passar no leitor e pronto!
Teremos até preço
(a depender da inflação)
Um número com cifrão.

 Lamento aos burocratas
Aos analisas organizacionais
Aos pesquisadores e estatísticos
Enquanto houver brilho nos olhos
Não posso, nem quero ser só um número.

                                                 (Terra fértil, p. 18) 

Rio – São Paulo

Os bancos da rodoviária
Ficam mais cenográficos
Pelas duas de manhã.
Em um completo vazio poético
Habitam ali os que já passaram
E aqueles que ainda não chegaram.

Eis que já é hora de voltar.

As ruas da Lapa tão atraentes
Com seus arcos, suas gentes
Periga fingir que saudade não sete
Mas sente…
E como sente!

O bar da cachaça
Onde a gente se perde e se acha
Se engraça e se enlaça
Até que a noite se desfaça.

O ônibus aponta na plataforma.
A rodoviária é uma plantação de sonhos
Onde alguns voltam sem fazer a colheita.

É que já não queria mais voltar.

Havia um amor de retorno
Que não lhe quis assim faceira, namoradeira.
De vê-la olhando nos olhos de outras mulheres
Só faltou morrer.
Por olhar nos olhos de outros homens
Não quis saber.
Que pena!

Lembrando do desprezo
Resolveu ficar
O ano novo a começar.
Subindo as escadas pra Santa Tereza
Curar as mágoas bebendo cerveja.

Mas um dia eu volto
Te explico tudo
E se você não entender
Tudo bem, meu bem.

Só vim pra te dize que
O Rio de Janeiro continua lindo.

                                         (Terra fértil, p. 84) 

Reféns da metrópole

Não me espere
Devo chegar atrasada
Como tantas outras vezes.

Este que insiste em me acordar
Finge controlar o tempo
Mas não passa de um objeto amorfo
Ponteiros em busca de uma identidade.

O sol adentra a janela
Vivaz como nunca
Impondo obrigações a alguns
Criando possibilidades para outros.

Buzinas, sirenes, faróis
Compõem a poética da manhã
Nada mais que remeta
Ao baixo meretrício da noite passada.

Tijolo com tijolo, cimento e tráfego
Chico Buarque deve ter passado
Na contramão aqui por São Paulo.

Eu que a esta hora
Sou moradora do silêncio
Ando pela casa falando com os olhos
Improvisando vontades pra seguir.

Não me espere
Devo chegar atrasada
Mais uma vez.

Fico a olhar as pessoas no trem
Fones de ouvido e mudez
Por que não cantam?
Por que não cantam?!
Deve ser porque não escutam
Bezerra da Silva
Deve ser…

Fico a olhar as pessoas nas ruas
Também devem estar atrasadas
Apostam corrida com seres imaginários
Que diariamente as acompanham.

Desce do trem.
Sobe as escadas.
Sinal vermelho.
Atravessa fora da faixa.
Corre até o ponto de ônibus.
Motorista passa direto.

Não há sorriso.

O relógio finge controlar o tempo.
Na cidade, cada um finge controlar a si mesmo.

                                                   (Terra fértil, p. 42)

Carne de mulher

Nua em frente ao espelho
Me olho
Me observo
Me vejo
E me sinto mulher.

Nas ruas é bem diferente.
Mesmo vestida
Me olham
Me observam
Me vee
Como pedaço de carne.

Quanto vale ou é por quilo?
Carne de primeira, de segunda
Carne de mulher?
Carne de vaca?
Seria eu uma vaca?

Cadê a mulher que eu era quando saí de casa?

Não! Não aceito! Me recuso!
Eu não sou a carne mais barata do mercado.
A carne mais barata do mercado não é a mulher negra!

                                                                 (Terra fértil, p. 54)

Prefiro a guerra

Telefone toca.
Sinto a navalha na carne
E o sangue esguichando.
Rapidamente os rumos mudam.

Rua de cima
Rua de baixo
É a porta direita do carro que se abre
Sem pausas e sem sorriso.

Aquela boca morta.
A mesma que te beija
É a boca que te corta.
É a fala que sai da boca
Que de fato me apavora.

Abro o portão
Subo as escadas.
Fogo morto
Tropecei na realidade.

A navalha era afiada
O sangue vai demorar a estancar.

O que você está esperando
O próximo episódio?
A próxima tragédia?

Se o amor é isso
Uma hemorragia interna
Eu prefiro a guerra. 

                   (Terra fértil, p. 118)

Menina bonita sem laço de fita

Laço de fita?
Nunca botou no cabelo
Diz que é feio, não combina.

Menina, só quer ser bonita.

Do nariz já não gosta
Da boca tem vergonha.
Toda semana o ritual.
Acorda cedo, lava o cabelo
Separa mecha por mecha
Começa a chapinha.
Às vezes o couro arde, queima.
Ela já não liga.

Gosto assim
Quando passa na rua e alguém diz:
– Psiu, ô morena, ô moreninha!

Menina, só quer ser bonita.

Queria que os garotos
A olhassem na escola
Mas dia após dia
Ela parece invisível.

Ainda não percebeu
Ao alisar seus cabelos
Alisa também seus crespos sonhos
Os deixando sem brilho
Sem forma definida.

Sexta-feira não abre mão
Vestir de branco é tradição
Sua vó lhe ensinou assim
Vivendo a ancestralidade
Essa não pode negar.

Ah menina…
Te vendo assim
Reconheço no seu presente
Pedaços do meu passado.

Menina bonita, sem laço nem fita
Tenho certeza
Eu ainda vou te ver brilhar
E seu cabelo crespo reinar.

Futura Rainha Nagô.

                           (Terra fértil, p. 76)

……………………………

(En Blogueiras feministas)

Despedida’

É madrugada
Reviro de um lado pro outro
Eu sei bem o que me tira o sono.

Ouço vozes,
Num programa de TV
Gal e Caetano cantam
“Recanto Escuro”.

As evidências denunciam
Esse grampo colorido na penteadeira
Não parece em nada com os meus.

O leite estragado na geladeira
Previa o gosto da despedida.

A inevitável conversa acontece
Com justificativas vãs que toda mulher
Já deve ter ouvido centenas de vezes:
“Eu não queria que fosse desse jeito”
“Desculpa, se eu te magoei”
“Não fica assim, vai ficar tudo bem”
“Uma hora vai passar”.

Eu odeio frases feitas.
Disfarço aquela inevitável vontade de chorar
Por raiva, desprazer e ironia.

Até parece que o amor não deu.

Engraçado, você é cheio de manias.
Parece que é só no fim
Que nos damos conta de algumas coisas.
Senta sempre do mesmo lado do sofá
Só usa camisetas de cor clara e
Nunca esquece de apagar as luzes.

Eu vou sentir saudades
Das conversas filosóficas
Das discussões ideológicas
Das músicas bregas que você ouvia
E até do que eu mais reclamava
De levantar e fazer o café pra você.

Eu já tinha até escolhido
O seu presente de Natal.
Um livro do Galeano
E uma camiseta de Ogum pintada à mão
Que encomendei num ateliê em Olinda.

Eu vou e deixo pra trás
As incertezas das minhas poesias
Que sempre quiseram te devorar.

O começo se parece com o fim.

Quando nos olhamos e
Não nos reconhecemos.
Da porta pra dentro
Da porta pra fora.

Jenyffer Nascimento. Terra Fértil (Coletivo Mjiba, 2014).

……………………..

(do seu Facebook)

Procuro uma passagem de trem

Em que a viagem seja duradoura

Que eu possa olhar demoradamente pela janela

E pouco a pouco, possa ir colocando a cabeça no lugar

Encaixando o quebra-cabeça do cotidiano

Das vontades não realizadas

Entre sim e nãos vividos,

Sentimentalidades que moram debaixo do tapete

Somada a abraços, silêncios e desesperos

Da minha vontade de ser mais

E não saber como.

Nessa toada

Vou esperar o ritmo do tempo

Até que possa fazer parada em alguma estação

E nesse momento encontrar meus despropósitos

Para serem companheiros momentâneos

Dessa imensidão que é ser

Dessa passagem que é estar

Quem sabe assim consiga bebericar

Da sabedoria apreendida pelo olhar

Do céu empoeirado de estrelas

Em que minha Vênus ou Saturno

Pronunciarão brados desse caminhar

De volta ao trem

Atenta ao rangido dos trilhos

E a lembrança do velho maquinista

Eu possa dormir de olhos abertos

Em um delírio semitranquilo

De cores fluorescentes.

Nesta hora,

Darei conta que uma mulher

Sentou-se ao meu lado

– chapéu, pele escura, olhar firme.

Existe algo entre nós

Que palavras atrapalhariam

Se fossem anunciadas

Sinto o ecoar de notas musicais

Ausentes de ondas sonoras

Estamos unidas por um senso de direção

Como se juntas soubéssemos exatamente pra onde ir

Não há calendários, relógios

Tampouco datas de aniversário

A serem lembradas, comemoradas

As bússolas já não apontam para o norte

E o centro gravitacional deslocou-se

Conforme o discernimento

(ou a falta de)

De cada um

Próxima parada:

Estação Incertezas

Por aqui, ainda vou me demorar.

(2016 )

Porxmeyre

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