O nome de Ana Cristina César ( ou Ana C. Como tamén adoitaba asinar), nacida no 52, é asimilada á Xeración do Mimeógrafo o Xeración Marxinal, unha xeración que publica ou é édita nos anos 70, anos dunha censura asoballante (rexime militar), e que procura expresarse con liberdade valéndose do instrumento que fora, como as fotocópias ou mimeógrafo.
Mais, nace nos 50. Nesta visita que estou facendo pola poesía brasileira, o que eu denomno Xeraciónd dos 50 é practicamente o início. E fáltame por ver ou confirmar se en realidade se pode falar desa Xeración 50 e iso resulta máis acaído que partir do tempo en que publican ( anos 70). Porén aí deixo a posibilidade.
E, en realidade, tampouco son eu o primeiro en reparar que a poesía de Ana Cristina pode ser cista fóra da Xeración Mimeógrafo. Xa Elfi Kürten Fenske (non é aprimeira vez que este etudoso aparece nos nosos artigos) di que en realidade usa as técnicas mimeoógrafo para criticalo ourefacelo desde dentro. Recomendo a lectura deste artigo de Elfi.
Dise que Ana Cristina César foi unha poeta precoz, pois xa de cativa ditaba os seus poemas á súa nai, para que esta os escribira, marcaba as pusas versais parando de andar.
E non se pode negar. Como tampouco se pode negar que foi unha poeta moi preocupada por abrir novos camiños expresivos. E insatisfeita xeralmente. Os textos en prosa poética (que aquí non imos recoller) parecen unha boa manifestación desa inquedanza. En realidae a súa obra comeza por aí, publicando textos en revistas e xornais na década de 70. En 1979 sae o seu primeiro libro Cenas de abril e tamén Correspondência completa. No ano seguinte sairá Luvas de pelica. E os tres aparecerán reunidos en A teus pés (1983), que conta tamén con algún inéditos. Mais en realidadeo seu nome comeza a soar forte cando Helloísa Buarque de Hollanda a sellecciona para 26 poetas de hoje, onde antologa a Xeración Mimeógrado ou Marxinal.
Despois do seu suicidio (31 nos), en 1983, será o seu amigo Armando Freitas Filho quen se farácargo principalmente da divulgación da súa obra. Aïnda que a súa descubridora sería a profeora Clara Alvim, coa que mantivo relación epistolar. Ítalo Moriconi será o seu biógrafo.
A súa é sempre unha poesía experimental. Dise que está moi marcada por acontecementos autobiográficos, nada novo…porque a poesía non nace da nada senón da experiencia de vivir.
Tamén se confesou lectora de Deleuze e foi tradutora de Sylvia Plath. A súa mente, o seu sentir foron sempre fornos de lapas ardendo, en continua combustión. Non coñezo estudo que relacione o suicidio de Ana Cristina César, co de Sylvia ou mesmo co de Clarice Lispector, de quen encontro ecos na súa poesía: por exemplo o uso do cotián como fonte so sublime. Aínda que a súa poesía parece informal, marxinal, o que ten de marxinal e de informal en realidade é unha fonda e constante procura estética pois ela mesma ten encionado que en realidade a súa poesía era “moi pensada, moi calculada, moi construída”. Alén diso tamén manifestou que a escrita é realmente unha re-escrita; e aquí quero volver sobre a posíbel influencia de Plath e Clarice na decisión do seu suicidio. Iso, tendo en conta que sempre foi inconformista e o biografismo da súa poesía parece levar ara a un final agardado.
Ben, como este é un artigo divulgativo, iremos ao que interesa, a súa poesía.
Te acalma, minha loucura!
Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados!
Este som de serra de afiar as facas
não chegará nem perto do teu canteiro de taquicardias…
Estas molas a gemer no quarto ao lado
Roberto Carlos a gemer nas curvas da Bahia
O cheiro inebriante dos cabelos na fila em frente no cinema…
As chaminés espumam pros meus olhos
As hélices do adeus despertam pros meus olhos
Os tamancos e os sinos me acordam depressa na madrugada
[feita de binóculos de gávea
e chuveirinhos de bidê que escuto rígida nos lençóis de pano
– Ana Cristina Cesar, em “Poética”. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
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Dias não menos dias
Chora-se com a facilidade das nascentes
Nasce-se sem querer, de um jato, como uma dádiva
(às primeiras virações vi corações se entrefugindo todos
ninguém soubera antes o que havia de ser não bater
as pálpebras em monocorde
e a tarde
pendurada ro raminho de um
fogáceo arborescente
deixava-se ir
muda feita uma coisa ultima.
– Ana Cristina Cesar, em “Poética”. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
………………………………………
enciclopédia
Hácate ou Hécata, em gr. Hekáté. Mit. gr.
Divindade lunar e marinha, de tríplice
forma (muitas vezes com três cabeças e
três corpos). Era uma deusa órfica,
parece que originária da Trácia. Enviava
aos homens os terrores noturnos, os fantasmas
e os espectros. Os romanos a veneravam
como deusa da magia infernal.
– Ana Cristina Cesar, em “Poética”. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
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Estou atrás
do despojamento mais inteiro
da simplicidade mais erma
da palavra mais recém-nascida
do inteiro mais despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais da palavra.
– Ana Cristina Cesar (28.5.69), em “Inéditos e dispersos”. [organização Armando Freitas Filho]. São Paulo: Editora Ática/IMS, 1999
………………………………
Fagulha
Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.
Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando
Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.
Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.
Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.
Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio
Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las
Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.
– Ana Cristina Cesar, em “A teus pés”. São Paulo: Brasiliense, 1982.
……………………………………….
Flores do mais
Devagar escreva
uma primeira letra
escreva
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais
– Ana Cristina Cesar, em “Inéditos e dispersos”. [organização Armando Freitas Filho]. São Paulo: Editora Ática/IMS, 1999.
……………………………
Instruções de bordo
para você, A. C., temerosa, rosa, azul-celeste
Pirataria em pleno ar.
A faca nas costelas da aeromoça.
Flocos despencando pelos cantos dos
lábios e casquinhas que suguei atrás
da porta.
Ser a greta,
o garbo,
a eterna liu-chiang dos postais vermelhos.
Latejar os túneis lua azul celestial azul.
Degolar, atemorizar, apertar
o cinto o senso a mancha
roxa na coxa: calores lunares,
copas de champã, charutos úmidos de
licores chineses nas alturas.
Metálico torpor na barriga
da baleia.
Da cabine o profeta feio,
de bandeja.
Três misses sapatinho fino alto esmalte nau
dos insensatos supervoos
rasantes ao luar
despetaladamente
pelada
pedalar sem cócegas sem súcubos
incomparável poltrona reclinável.
– Ana Cristina Cesar, em “Poética”. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
§
Noite carioca
Diálogo de surdos, não: amistoso no frio.
Atravanco na contramão. Suspiros no
contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta
do mundo: essa que não tem nenhum segredo.
– Ana Cristina Cesar, em “A teus pés”. São Paulo: Editora Ática/IMS, 1998.
§
Olho muito tempo o corpo de um poema
Olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas.
– Ana Cristina Cesar, “A Teus Pés (1982). em “Os cem melhores poemas brasileiros do Século”. [seleção e organização Ítalo Moriconi]. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.
……………………………………..
O tempo fecha.
Sou fiel os acontecimentos biográficos.
Mais do que fiel, oh, tão presa! Esses mosquitos
que não largam! Minhas saudades ensurdecidas
por cigarras! O que faço aqui no campo
declamando aos metros versos longos e sentidos?
Ah que estou sentida e portuguesa, e agora não
sou mais, veja, não sou mais severa e ríspida:
agora sou profissionaL
(de A teus pés)
…………………………
CIÚMES
Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma
Tão distraidamente.
…………………………………….
Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:
mudo convite
tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite
tenho uma vida branca
e limpa à minha espera.
…………………………………
O nome do gato assegura minha vigília
e morde meu pulso distraído
finjo escrever gato, digo: pupilas, focinhos
e patas emergentes. Mas onde repousa
o nome, ataque e fingimento,
estou ameaçada e repetida
e antecipada pela espreita meio adormecida
do gato que riscaste por te preceder e
perder em traços a visão contígua
de coisa que surge aos saltos
no tempo, ameaçando de morte
a própria forma ameaçada do desenho
e o gato transcrito que antes era
marca do meu rosto, garra no meu seio.
………………
E penso
a face fraca do poema/ a metade na página
partida
Mas calo a face dura
flor apagada no sonho
Eu penso
A dor visível do poema/ a luz prévia
Dividida
Mas calo a superfície negra
pânico iminente do nada.
……………………….
é aqui
por enquanto
ainda não tem
cortina
tapete luz indireta
amenizando a noite
quadro nas paredes
……………………………………..
Nada disfarça o apuro do amor.
Um carro em ré. Memória da água em movimento. Beijo.
Gosto particular da tua boca. Último trem subindo ao
céu.
Aguço o ouvido.
Os aparelhos que só fazem som ocupam o lugar
clandestino da felicidade.
Preciso me atar ao velame com as próprias mãos.
Sirgar.
Daqui ao fundo do horto florestal ouço coisas que
nunca ouvi, pássaros que gemem.
……………………………….
A ponto de
partir, já sei
que nossos olhos
sorriam para sempre
na distância.
Parece pouco?
Chão de sal grosso e ouro que se racha.
A ponto de partir, já sei que
nossos olhos sorriem na distância.
Lentes escuríssimas sob os pilotis.
Esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos
……………………………..
TRAVELLING
Tarde da noite recoloco a casa toda em seu lugar.
Guardo os papéis todos que sobraram.
Confirmo para mim a solidez dos cadeados.
Nunca mais te disse uma palavra.
Do alto da serra de Petrópolis,
com um chapéu de ponta e e um regador,
Elizabeth reconfirmava, “Perder
é mais fácil que se pensa”.
Rasgo os papéis todos que sobraram.
“Os seus olhos pecam, mas seu corpo
não”,
dizia o tradutor preciso, simultâneo,
e suas mãos é que tremiam. ‘É perigoso”,
ria Carolina perita no papel Kodak.
A câmera em rasante viajava.
A voz em off nas montanhas, inextinguível
fogo domado da paixão, a voz
do espelho dos meus olhos,
negando-se a todas as viagens,
e a voz rascante da velocidade,
de todas três bebi um pouco
MARFIM
A moça desceu os degraus com o robe
monografado no peito: L. M. sobre o coração.
Vamos iniciar outra Correspondência, ela
propôs. Você já amou alguém verdadeiramente?
Os limites do romance realista. Os caminhos do
conhecer. A imitação da rosa. As aparências
desenganam. Estou desenganada. Não reconheço
você, que é tão quieta, nessa história. Liga
amanhã outra vez sem falta. Não posso
interromper o trabalho agora. Gente falando por
todos os lados. Palavra que não mexe mais no
barril de pólvora plantado sobre a torre de
marfim.
COMO RASURAR A PAISAGEM
a fotografia
é um tempo morto
fictício retorno à simetria
secreto desejo do poema
censura impossível
do poeta
PSICOGRAFIA
Também eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não sou e digo
a palavra: não digo (não posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto
………………………………..
Fisionomia
não é mentira
é outra
a dor que dói
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outrart
outra a dor que dói
houve um poema
que guiava a própria ambulância
e dizia: não lembro
de nenhum céu que me console,
nenhum,
e saía,
sirenes baixas,
recolhendo os restos das conversas,
das senhoras,
“para que nada se perca
ou se esqueça”,
proverbial,
mesmo se ferido,
houve um poema
ambulante,
cruz vermelha
sonâmbula
que escapou-se
e foi-se
inesquecível,
irremediável,
ralo abaixo.
……………………………
umario
Polly Kellog e o motorista Osmar.
Dramas rápidos mas intensos.
Fotogramas do meu coração conceitual.
De tomara-que-caia azul-marinho.
Engulo desaforos mas com sinceridade.
Sonsa com bom-senso.
Antena da praça.
Artista da poupança.
Absolutely blind.
Tesão do talvez.
Salta-pocinhas.
Água na boca.
Anjo que registra.
deus na antecâmara
Mereço (merecemos, meretrizes)
perdão (perdoai-nos, patres conscripti)
socorro (correi, vaiei-nos, santos perdidos)
Eu quero me livrar desta poesia infecta
beijar mãos sem elos sem tinturas
consciências soltas pêlos ventos
desatando o culto das antecedências
sem medo de dedos de dados de dúvidas
em prontidão sanguinária
(sangue e amor se aconchegando
hora atrás de hora)
Eu quero pensar ao apalpar
eu quero dizer ao conviver
eu quero parir ao repartir
filho
pai
e
fogo
DE-LI-BE-RA-DA-MEN-TE
abertos ao tudo inteiro
maiores que o todo nosso
em nós (com a gente) se dando
HOMEM: ACORDA!
……………………………………..
QUANDO CHEGAR
Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar
Desta terra louca
Permiti que eu seja mais um desaparecido
Da lista de mortos de algum campo de batalha
Para que eu não fique exposto
Em algum necrotério branco
Para que não me cortem o ventre
Com propósitos autopsianos
Para que não jaza num caixão frio
Coberto de flores mornas
Para que não sinta mais os afagos
Desta gente tão longe
Para que não ouça reboando eternos
Os ecos de teu soluço
Para que perca-se no éter
O lixo desta memória
Para que apaguem-se bruscos
As marcas do meu sofrer
Para que a morte só seja
Um descanso calmo e doce
Um calmo e doce descanso.
junho/67
…………………………………..
Samba-canção
Ana Cristina Cesar
Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone – taí,,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhando na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz…
A teus pés, Global Brasiliense, 1993 – S.Paulo, Bras
………………………………
mbulâncias se calaram
as crianças suspenderam a voracidade batuta
dois versos deliraram por detrás dos túneis
moleza nos joelhos
mão de ferro nos peitinhos
tristeza suarenta, locomotiva, fútil
patinho feio
soldadinho de chumbo
manto de jacó, escada de jacó
sete anos de pastor
estrela demente desfilando na janela
de repente as ambulâncias estancaram o choro
voraz dos bebê
…………………………………..
MOCIDADE INDEPENDENTE
Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra
cima sem medir mais as conseqüências. Por que
recusamos ser proféticas? E que dialeto é esse para
a pequena audiência de serão? Voei pra cima: é
agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem
uma graça atravessando o Estado de São Paulo, de
madrugada, por você, e furiosa: é agora, nesta
contramão.
………………………….
FAMA E FORTUNA
Assinei meu nome tantas vezes
e agora viro manchete de jornal.
Corpo dói – linha nevrálgica via
coração. Os vizinhos abaixo
imploram minha expulsão imediata.
Não ouviram o frenesi pianíssimo da chuva
nem a primeira história mesmo de terror:
no Madame Tussaud o assassino esculpia
as vítimas em cera. Virou manchete.
Eu guio um carro. Olho a baía ao longe,
na bruma de neon, e penso em Haia,
Hamburgo, Dover, âncoras levantadas
em Lisboa. Não cheguei ao mundo novo.
Nada é nacional. Desço no meu salto,
dói a culpa intrusa: ter roubado
teu direito de sofrer. Roubei tua
surdina, me joguei ao mar,
estou fazendo água. Dá o bote.
casablanca
Te acalma, minha loucura!
Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados!
Este som de serra de afiar as facas
não chegará nem perto do teu canteiro de taquicardias…
Estas molas a gemer no quarto ao lado
Roberto Carlos a gemer nas curvas da Bahia
O cheiro inebriante dos cabelos na fila em frente no cinema…
As chaminés espumam pros meus olhos
As hélices do adeus despertam pros meus olhos
Os tamancos e os sinos me acordam depressa na madrugada
[feita de binóculos de gávea
e chuveirinhos de bidê que escuto rígida nos lençóis de pano
– Ana Cristina Cesar, em “Poética”. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Dias não menos dias
Chora-se com a facilidade das nascentes
Nasce-se sem querer, de um jato, como uma dádiva
(às primeiras virações vi corações se entrefugindo todos
ninguém soubera antes o que havia de ser não bater
as pálpebras em monocorde
e a tarde
pendurada ro raminho de um
fogáceo arborescente
deixava-se ir
muda feita uma coisa ultima.
– Ana Cristina Cesar, em “Poética”. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
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Soneto
Pergunto aqui se sou louca
Quem quer saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu
Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida
Pergunto aqui meus senhores
quem é a loura donzela
que se chama Ana Cristina
E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?
– Ana Cristina Cesar, em “A teus pés”. São Paulo: Brasiliense, 1982.
.……………………
Quartetos
Desdenho os teus passos
Retórica triste:
Sorrio na alma
De ti nada existe
Eu morro e remorro
Na vida que passa
Eu ouço teus passos
Compasso infernal
Nasci para a vida
De morte vivi
mas tudo se acasa
silêncio. Morri
– Ana Cristina Cesar, em “Inéditos e dispersos”. [organização Armando Freitas Filho]. São Paulo: Editora Ática/IMS, 1999.
.……………………………….
Chove
A chuva cai.
Os telhados estão molhados,
Os pingos escorrem pelas vidraças.
O céu está branco,
O tempo está novo.
A cidade lavada.
A tarde entardece,
Sem o ciciar das cigarras,
Sem o jubilar dos pássaros,
Sem o sol, sem o céu.
Chove.
A chuva chove molhada,
No teto dos guarda-chuvas.
Chove.
A chuva chove ligeira,
Nos nossos olhos e molha.
O vento venta ventado,
Nos vidros que se embalançam,
Nas plantas que se desdobram.
Chove nas praias desertas,
Chove no mar que está cinza,
Chove no asfalto negro,
Chove nos corações.
Chove em cada alma,
Em cada refúgio chove;
E quando me olhaste em mim,
Com os olhos que me seguiam,
Enquanto a chuva caía
No meu coração chovia
A chuva do teu olhar.
– Ana Cristina Cesar, em “Inéditos e dispersos”. [organização Armando Freitas Filho]. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
.……………………
Protuberância
Este sorriso que muitos chamam de boca
É antes um chafariz, uma coisa louca
Sou amativa antes de tudo
Embora o mundo me condene
Devo falar em nariz(as pontas rimam por dentro)
Se nos determos amanhã
Pelo menos não haverá necessidades frugais nos espreitando
Quem me emprestar seu peito ma madrugada
E me consolar, talvez tal vez me ensine um assobio
Não sei se me querem, escondo-me sem impasses
E repitamos a amadora sou
Armadora decerto atrás das portas
Não abro para ninguém, e se a pena é lépida, nada me detém
É sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhos
O círculo se abre em circunferências concêntricas que se
Fecham sobre si mesmas
No ano 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e serei uma rainha
Rainha de quem, quê, não importa
E se eu morrer antes disso
Não verei a lua mais de perto
Talvez me irrite pisar no impisável
E a morte deve ser muito mais gostosa
Recheada com marchemélou
Uma lâmpada queimada me contempla
Eu dentro do templo chuto o tempo
Um palavra me delineia
VORAZ
E em breve a sombra se dilui,
Se perde o anjo.
– Ana Cristina Cesar, em “Poética”. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
.……………………………….